Desde sempre as mãos humanas procuraram transformar a matéria, Da mais dura, como o ferro, à mais dúctil, como o barro, o desejo humano é sempre o mesmo: moldá-la, fazê-la responder às suas necessidades físicas e espirituais, da pedra lascada desenhada para caçar, aos estiletes com que se desenharam os primeiros pictogramas para escrever a história humana, a matéria é o centro da nossa vida individual e coletiva. Toda a nossa vida gira em torno dos objetos que vão sendo feitos, dos artefactos mais ou menos belos, mais ou menos úteis que todos os dias nos entram pela realidade a dentro. É arte, é mercadoria, é liberdade, é escravidão, é trabalho, é luxo.

Diz-nos o escritor Bruno Shulz, nos seus magníficos contos Tratado dos Manequins que “não há matéria morta”, há apenas matérias que ocultam “desconhecidas formas de vida”, cuja escala “é infinita” e “inesgotáveis” são “os seus matizes”. A partir desta sexta-feira e até 2 de Fevereiro de 2021, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, estará patente uma exposição dedicada aos trabalhos que o joalheiro e artesão francês René Lalique fez em vidro. Mas subjacente a cada uma das 87 peças apresentadas está a discussão sobre o fascínio que a matéria exerce sobre os Homens, que os leva a medirem-se com Deus para criarem o seu próprio universo.

Neste caso a matéria que vamos contemplar é o vidro porque nele Lalique encontrou a “matéria maravilhosa (…) quase infinita”. Por ele, o joalheiro abandonou as gemas raras embutidas em ouro, os mil e um detalhes de pregadores, gargantilhas, pendentes, as metamorfoses das borboletas em mulher e vice-versa, os escaravelhos, as braceletes que adornariam a aristocracia europeia. Por essa substância de areia derretida e soprada que podia adquirir a forma de todos os sonhos, o joalheiro tornou-se um industrial, abriu fábricas, abandonou a ideia da aura do objeto único para fazer objetos vítreos em série, abandonou a aristocracia tão decadente e terminal nesse final do século XIX para fazer peças utilitárias para a classe média do século XX. A exposição é grátis, e vale a pena ver esta história contada com peças que estão pela primeira vez em Portugal, emprestadas pelo museu Lalique em França e por colecionadores particulares.

René Lalique, Pendente Orquídea. França, c. 1900-1901. Vidro, ouro e esmalte. Museu Calouste Gulbenkian, inv. 1149. © Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. Foto: Catarina Gomes Ferreira

Na mesma França e nos mesmos dias inquietos do final do século XIX, construía-se, ao mesmo tempo, a torre Eiffel, (à data a mais alta do mundo), uma estrutura em ferro que se via de qualquer ponto de Paris, e as pequeníssimas peças de vidro com altos ou baixos relevos evocando a natureza que seriam depois engastadas no ouro fazendo uma gargantilha própria para pescoços esguios, vasos em vidro e bronze de onde sobressaiam rostos e corpos, sobretudo femininos, denunciando ainda uma clara influência simbolista.

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Eram dois mundos que coabitavam sem saberem um do outro, mas que iram ser determinantes no século XIX: o aço e o ferro das trincheiras da 1ª Guerra Mundial e o vidro como nova matéria de sonho, aquela que podia conter milhares de aromas dos perfumistas como Coty, Roger & Galet, Guerlin, Rochas, mas também minimalistas castiçais em forma de papoila em vidro transparente, taças, copos, garrafas, que coabitavam com réplicas dos arranha-céus americanos, ou painéis decorativos para portas e janelas desses mesmos arranha-céus de Nova Iorque.

Vai assistir à Revolução Bolchevique, à queda dos impérios europeus. Vai começar a sua carreira em plena Art Nouveau ou Arte Nova mas vai ser na Art Déco que se vai afirmar, convivendo, nesse início do século XX, com o Construtivismo Russo, o Cubismo, a Bauhaus, o Dadaismo, o Surrealismo. Lalique, que nasceu em 1860, vai ser sempre um homem que antecipa o espírito do tempo e, como reforça Luísa Sampaio, curadora desta mostra, “ele bebia o mundo, ia buscar influencias em todos os lados; desde a literatura à arquitetura mais vanguardista americana.”

Quando surgiu o automóvel ele fez mascotes em vidro para serem ostentadas na parte da frente nos carros, mas também desenhou a iluminação do maior paquete do mundo o Normandie, e criou peças em vidro e prata para a primeira classe de carruagens de comboios da empresa Wagons-Lits. Era, tal como Calouste Gulbenkian, um espírito cosmopolita, apaixonado pela arte em todos as suas aparições. Talvez por isso a amizade entre os dois, apresentados pela atriz Sarah Bernhard,tenha durado a vida toda e o senhor Sarkis possui a mais vasta e importante coleção de obras de Lalique.

Lalique, o inventor do vidro como matéria preciosa

Lalique, Vaso Arqueiros. França, 1921. Vidro moldado e soprado. Coleção MuséeLalique, Wingen-sur-Moder. © Studio Y. Langlois, Musée Lalique, Wingen-sur-Moder.

Mas, voltemos um pouco atrás. Muito jovem, depois da morte do pai, René ingressa nas oficinas do artesão e joalheiro Louis Aucoc, seguindo depois para a École des Arts Décoratifs em Paris e mais tarde para Inglaterra, onde continuou a estudar artes decorativas durante mais dois anos. De recordar que nesta época as artes decorativas eram vistas como algo menor em relação à pintura, à escultura, etc. Em 1885, já reconhecido como designer independente trabalha como joalheiro para as casas Boucheron e Cartier. Dois anos mais tarde abre a sua própria oficina onde começa a criar peças muito influenciadas por um fascínio em voga pela cultura japonesa, que ficou conhecido no meio artístico como Japonismo. Nesta fase ainda trabalha com pedras preciosas e semi-preciosas, mas já começa a misturá-las com matérias “novas” como o marfim ou o vidro.

René Lalique, Pulseira Mochos. França, c. 1900-1901. Vidro, ouro, esmalte e calcedónia. Museu Calouste Gulbenkian, inv. 1179. © Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. Foto: Catarina Gomes Ferreira

Na Exposição Universal de Paris, de 1900, o artista apresenta o vidro em todo o seu esplendor e é com ele e não com pedras preciosas que vai forjar a sua reputação. Com ele a joia só acessível a alguns torna-se bijuteria acessível a muitos mais. E, se hoje a palavra bijuteria ganhou um sentido depreciativo, sinónimo de “barato” e de “má qualidade”, imagine possuir um bijuteria de Lalique, ou um dos seus frascos de perfume. Nesta exposição ganha fama de “inventor da nova joalharia” e recebe uma medalha da legião de Honra. Estava aberto o caminho para um novo conceito de joia.

Mas o clima rapidamente mudou e, durante os anos da Guerra 14-18, o industrial pára a criação vidreira e coloca uma das suas fábricas ao serviço da construção de material hospitalar, para ajudar o país no esforço de guerra. No fim do conflito, aposta fortemente na produção vidreira e há-de abrir mais duas, no princípio dos anos vinte, na região da Alsácia-Lorena, que empregarão centenas de trabalhadores. Com estas fábricas, oficinas e lojas, uma delas na Place Vendôme, Lalique coloca o vidro na história cultural, económica e artística do século XX.

1925 será o ano do seu triunfo na Exposição de Artes de decorativas de Paris e também o triunfo da Art Déco. Só aí o artista apresenta trabalhos em vidro colorido, porque a sua paixão era a transparência, a forma como ela capta e refrata a luz. Pelo meio há trabalhos em que são usadas técnicas milenares como peças feitas com moldes em “cera perdida” e experimenta outros novos. Faz peças que misturam o vidro com metais preciosos como a prata e o outro. Uma desta peças pertence a Gulbenkian, foi a mais cara das obras de Lalique compradas pelo industrial do petróleo, que tinha, na sua casa, em Londres, armários só para expor as peças deste artista. Para ele foram sempre peças de arte e não de uso.

René Lalique, Centro de mesa Figura Feminina. França, c. 1903-1905. Prata e vidro moldado. Museu Calouste Gulbenkian, inv. 1214. A peça mais cara que Calouste Gulbenkian comprou a Lalique © Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. Fotos: Carlos Azevedo

Nos anos 30, sem nunca abandonar os seus motivos de fascínio: o classicismo grego-latino, e os elementos da natureza, as serpentes, as górgonas, o corpo masculino na sua aceção clássica. Mas, há-se confessar que nenhum dos seus trabalhos originais lhe deu tanto prazer como criar objetos em série como vasos ou jarras ou copos. Sentia-se muito atraído pelo teórico Roger Marx e a sua ideia de “L’art social”, o que evidencia como ele compreendeu sempre o seu tempo e lhe quis responder. Talvez o Construtivismo Russo tenha estado mais perto dele do que é visível.

René passa os seus últimos anos de vida na França ocupada pelos nazis e morre em 1945, precisamente um dia depois da França ser libertada. Consta que morreu feliz com a notícia. Dois dos seus filhos, Marc e Marie-Claude Lalique, herdaram a paixão pelo vidro e continuaram o negócio e a sua expansão. Atualmente, a marca Lalique já não pertence à família e dedica-se à criação de perfumes próprios e escultura em cristal, mobiliário e decoração, como pode ser visto aqui, no site oficial da marca.

René Lalique e a Idade do Vidro é uma exposição gratuita que pode ser vista diariamente, com exceção das terças-feiras, dia de encerramento do museu Gulbenkian