Um dia, não sabe bem quando, João Paulino ter-lhe-á ligado para dar boleia até Ansião “a um tal de Fechaduras” porque precisava dele para “um trabalho que tinha, para abrir umas portas”. Apesar de se ter disponibilizado, a boleia acabaria por não se concretizar, mas esta segunda-feira, durante o seu depoimento no julgamento do caso Tancos, João Pais, conhecido por Caveirinha, recuou no tempo para se lembrar deste episódio e afirmar: “A partir daí, sim, sinto que me envolvi nos assuntos”.
É que, poucos dias depois, João Paulino, indicado pelo Ministério Público (MP) como mentor do furto aos Paióis Nacionais de Tancos, ter-lhe-á ligado a dizer que, afinal, já não era preciso trazer o Fechaduras. Dias depois, uma nova chamada de Paulino: “Disse-me que o poderia ajudar numa coisa que era o que o Fechaduras era para fazer. Eu disse que não sabia abrir portas. Disse-me que não era preciso e que me explicaria melhor pessoalmente. E que precisava que eu subisse dentro de três ou quatro dias. Jantámos, explicou-me tudo um bocado mais detalhado e prontos, é aqui que surge…”.
Logo aí percebeu, por ser um trabalho anteriormente atribuído a Fechaduras, que “não podia ser nada de bom”. No entanto, explica que “nunca” teve “ideia que fosse algo desta natureza”: furtar os Paióis Nacionais de Tancos. “Simplesmente me referiu que era o trabalho que o Fechaduras ia fazer”, acrescentou. Fechaduras nunca apanhou essa boleia nem fez esse “trabalho” e, mais tarde, acabaria por denunciar o plano à polícia e por não ser acusado no processo. Já Caveirinha, Paulino e outros 21 arguidos estão agora a ser julgados pelo furto aos Paióis de Tancos — mas nem todos confessaram os crimes. d que é a quarta sessão do julgamento resulta que o furto foi realizado por apenas dois arguidos — que Caveirinha não foi um dos que confessou, tendo assumido que tem “de pagar pelo que” fez
Antes, relatou ao tribunal como é que realizou o furto, com Paulino, e como Hugo Mário Santos ficou de vigia. “Só fomos dois a fazer aquilo. Mais ninguém: entrar lá dentro e carregar, só eu o o João [Paulino]”, afirmou, acrescentando que foi o ex-fuzileiro quem usou uma máquina — “Nunca vi aquilo na minha vida”, disse — que extraiu a fechadura e lhes permitiu entrar nos Paióis.
“Escondemos a carrinha. Cortou-se a rede. Foi entrar, começar a pegar nas caixas que estavam à mão e ir embora”.
Questionado pelo juiz sobre onde ficou o armamento, Caveirinha disse que ficou “na carrinha”. Aos juízes, explicou que o seu “lucro” por ter participado no furto “nunca ficou definido”. “[João Paulino] disse que ia dar algum dinheiro. Que depois se veria e que uma boa parte seria para mim. Sempre tive a sensação que ia lucrar algo com isto”, admitiu. Diz que não se orgulha pelo que fez: “Pelo contrário, tenho imensa vergonha”. Mas garante em tribunal: “Só fomos nós os dois a fazer aquilo: eu e o João [Paulino]. A entrar lá dentro e carregar, fui só eu o João, mais ninguém”. Mais tarde, assegura, aconselho Paulino a entregar o material furtado. “Foi unânime a gente entregar aquilo. Ele disse que ia tratar disso”, explicou.
“O que ganhou com isto tudo?”, perguntou o juiz. “Um enorme sarilho”, respondeu. Já questionado pelo seu advogado, Tiago Melo Alves, o arguido explicou que tem “noção da gravidade” do que fez e que tem de “pagar” pelo que fez.
Hugo Santos assume que levou assaltantes até aos Paióis porque Paulino lhe prometeu dar mil euros. “Nem sequer sabia o que iam roubar”
No exterior dos Paióis tinha ficado Hugo Mário Santos, também ouvido esta segunda-feira em tribunal. Segundo o seu depoimento, terá sido convidado por Paulino no fim de semana anterior ao furto. “Preciso de ajuda para uma coisa: chamei um amigo meu; vamos fazer uma coisa que não é legal. Se quiseres ir comigo, dou-te mil euros e só precisas de auxiliar, dar boleia”, reproduziu o arguido, lembrando o que Paulino lhe terá dito.
Certo é que Hugo aceitou auxiliar e no dia do furto ficou “no carro a fumar cigarros” durante “umas três horas”. Garante que, nesse momento, “nem sequer sabia o que iam roubar”. Sobre o material furtado, o arguido diz não ter tido conhecimento sobre onde terá ficado guardado até porque Paulino terá combinado com ele e com Caveirinha não lhes contar para não serem envolvidos “se um dia isto se souber”. “Nem saberíamos onde as coisas iam ser guardadas. Nem eu nem o Caveirinha”, assegurou.
Também Hugo se diz arrependido. “Mais tarde arrependi-me porque não fazia ideia da dimensão das coisas. Disse ao Paulino para fazer com que a situação…que as coisas aparecessem num lado qualquer”, contou, adiantando que foi quando viu as notícias que percebeu “tinha sido muito grave”. “Resolve-te faz isso aparecer”, terá dito a Paulino.
Esta é a primeira vez que Hugo Mário Santos assume o seu envolvimento nos crimes. O arguido explicou em tribunal que até considera que teria “escapatória” dos crimes, mas que “não ia conseguir dormir descansado, sabendo que ia haver pessoas condenadas por uma coisa que não fizeram”. “Mesmo que seja na cadeia, durmo descansado”, disse.
Antes, António Laranjinha — também acusado pelo MP — prestou declarações e alegou que esteve nos Paióis Nacional de Tancos, sim, mas não no dia do furto: deslocou-se até lá com Fernando Santos, Gabriel Moreira e João Paulino para fazer o reconhecimento do local, uns meses antes, mas por “receio” acabou por desistir de colaborar no furto a Tancos. Ficaram por ali durante “duas ou três horas”. “O que falaram durante esse tempo?”, perguntou o procurador. “Estivemos a falar da vida“, respondeu-lhe António Laranjinha, rindo-se.
Segundo explicou o arguido, cerca de três meses antes do furto, João Paulino convidou-o a ir até aos Paióis — apesar de, na altura, só saber que ia para Tancos quando, a caminho, na A23 viu “uma tabuleta a dizer Tancos”. “Ele disse: ‘Vamos ali ver uma coisa’. E a gente foi. Todo o caminho [o Paulino] falava era uma coisa que dava para ganhar um bom dinheiro”.
Durante a tarde, Fernando Santos também negou ter estado envolvido no furto. Em tribunal, explicou que foi aos Paióis na noite do reconhecimento, depois de Paulino lhe ter dito que queria “mostrar um negócio”, mas que rapidamente percebeu que o plano do furto era “uma perfeita loucura, uma estupidez”. E, por isso, falou com Gabriel Moreira (também arguido) e ambos concordaram em informar João Paulino que não iam participar.
Nessa altura [Paulino] ficou chateado connosco e acabou por dar a entender que ele próprio ia desistir daquilo”, contou.
Gabriel Moreira acabaria por corroborar o depoimento de Fernando, dizendo que o plano de Paulino era “uma loucura”.
Já Pedro Marques negou ter estado em Tancos quer no dia do furto, quer no dia do reconhecimento. “Foi o dia em que a minha mãe foi submetida a uma cirurgia, um tumor na cabeça. Lembro-me desse dia e estive em todos os lados menos em Tancos”, disse em relação ao dia do furto.
O julgamento retoma na quinta-feira depois de a sessão de terça-feira ter sido cancelada já que os arguidos que eram para ser ouvidos amanhã, foram ouvidos já esta segunda-feira.
Dia 3 de Tancos. João Paulino diz que lhe disseram que ministro da Defesa sabia da negociação
Entre os arguidos está o ex-ministro Azeredo Lopes, o ex-diretor nacional da Polícia Judiciária Militar (PJM), Luís Vieira, o ex-porta-voz da PJM, Vasco Brazão, e o ex-fuzileiro João Paulino, que segundo o Ministério Público foi o cérebro do furto divulgado pelo Exército a 29 de junho de 2017 — a alegada recuperação do material de guerra furtado ocorrido na região da Chamusca, em Santarém, quatro meses depois.
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Os arguidos respondem por um conjunto de crimes, como terrorismo, associação criminosa, denegação de justiça, prevaricação, falsificação de documentos, tráfico de influência, abuso de poder, recetação e detenção de arma proibida. Azeredo Lopes está acusado dos crimes de denegação de justiça, prevaricação, favorecimento pessoal praticado por funcionário, abuso de poder e denegação de justiça.