O número de pessoas com deficiência inscritas como desempregadas nos primeiros seis meses deste ano é superior a todo o ano de 2019, refere um relatório do Observatório da Deficiência, segundo o qual o efeito da pandemia foi imediato.

O relatório “Pessoas com Deficiência em Portugal – Indicadores de Direitos Humanos 2020” é apresentado esta sexta-feira, em Lisboa, e é elaborado pelo Observatório da Deficiência e Direitos Humanos (ODDH), revelando que o atual contexto de pandemia provocada pela Covid-19 teve “imediatamente um efeito muito forte” na área do emprego das pessoas com deficiência.

De acordo com os dados do relatório, que vai na quarta edição, no primeiro semestre de 2020 havia 13.270 pessoas com deficiência inscritas nos centros de emprego, o que representa um aumento de 10% face aos valores globais de 2019, quando se registaram 12.027 pessoas com deficiência inscritas como desempregadas.

A mais de 13 mil pessoas desempregadas representam “um valor que se situa ligeiramente acima do pico de desemprego registado neste grupo em 2016”.

Em declarações à agência Lusa, a diretora do Observatório do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP-ULisboa) apontou que o desemprego entre as pessoas com deficiência vinha a baixar gradualmente desde 2016.

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No entanto, no primeiro semestre de 2020, quando a pandemia nos atinge em cheio, só em seis meses, o desemprego aumenta 10% entre as pessoas com deficiência e ultrapassa o valor do pico mais alto de 2016″.

Os dados do relatório mostram que as 12.027 pessoas inscritas em 2019 representam um decréscimo de 1% relativamente ao ano de 2018, apesar de esta redução ter sido “muito mais expressiva na população em geral”, entre a qual abrandou 9%.

“Este é um dado muito significativo em termos das vulnerabilidades que de facto atingem as pessoas com deficiência”, apontou a investigadora, segundo a qual este contraste é semelhante a outras áreas, desde a educação, condições de vida ou a exposição ao risco de pobreza ou exclusão social.

Deu como exemplo o abandono escolar, apontando que apesar de as taxas de abandono estarem a baixar, “o fosso entre a população com deficiência e a sem deficiência mantinha-se quase estável”.

Tendo por base dados do Inquérito Europeu às Condições de Vida e Rendimento 2018, o relatório sublinha que nesse ano “a taxa de abandono escolar precoce nos alunos e alunas com deficiência com idades entre os 18 e os 24 anos em Portugal era de 21,9%, muito superior à média dos alunos sem deficiência em Portugal” e que se situava nos 12,4%.

Na opinião de Paula Campos Pinto, estes dados demonstram que “o que se passa na sociedade portuguesa é que os avanços para a população com deficiência acontecem por efeito de arrastamento”.

Quando melhora a situação para a população em geral, acaba por também arrastar consigo a maioria dos indicadores para as pessoas com deficiência, mas à mínima crise estas conquistas são imediatamente postas em causa ou anuladas e percebemos a fragilidade destas conquistas e a necessidade imperiosa de atender de uma forma mais prioritária a estas populações e a estes grupos no sentido de ir corrigindo estes desfasamentos”.

Para a responsável, enquanto se mantiver este fosso entre as pessoas com deficiência e as pessoas sem deficiência, “não se pode falar em igualdade” e defendeu que as “medidas que existem são pouco eficazes” e não estão a conseguir esbater essa diferença, algo que entende como “preocupante”.

O relatório refere também que, no que diz respeito às condições de vida e proteção social, esse desfasamento entre pessoas com e sem deficiência “é considerável”, já que em 2018 o risco de pobreza nas mulheres com deficiência era de 29,1%, 11,2 pontos percentuais acima dos 17,9% registados entre as mulheres sem deficiência.

“Este nível de desfasamento quase não se alterou desde 2016”, lê-se no relatório, que acrescenta ainda que “apesar das melhorias registadas de uma forma global para ambos os grupos (…), as desigualdades mantêm-se quase inalteradas entre a população com e sem deficiência”.

Pessoas com deficiência e cuidadores mais impactados pela pandemia

Apoios cortados total ou parcialmente e cuidadores exaustos e que se sentem esquecidos são outros resultados do estudo do Observatório da Deficiência sobre o impacto “muito expressivo” da pandemia.

Cerca de um terço das 725 pessoas inquiridas durante a fase de confinamento revelou que os apoios de assistência pessoal de que usufruíam tinham sido reduzidos ou suspensos, enquanto 40% disse mesmo que esses apoios lhes foram retirados, com destaque para a redução ou suspensão das terapias e o encerramento de Centros de Atividades Ocupacionais.

A coordenadora do ODDH apontou que ficar a trabalhar em casa ao mesmo tempo que se cuida de um jovem ou um adulto com autismo não é a mesma coisa que cuidar de uma criança ou jovem sem deficiência e que, por isso, é preciso acautelar os devidos apoios, defendendo que aqui “se poderia talvez fazer mais”.

Entretanto, eles [os serviços] foram retomados, mas apenas parcialmente, ou estão ainda suspensos, e isto representa uma sobrecarga muito grande para as famílias porque são elas que nestas condições ficam na primeira linha dos cuidados”.

De acordo com a responsável, esta situação teve reflexos na saúde e bem-estar destas pessoas, não só das pessoas com deficiência, mas também dos seus cuidadores, algo que ficou demonstrado com os resultados dos estudos.

Entre as pessoas com deficiência, 37,2% tem a perceção que o seu estado de saúde se agravou desde o início da pandemia, enquanto 51% referiram que sentiam mais tristes ou deprimidos do que habitualmente ou mais ansiosos (58%).

Já entre os 88 cuidadores que participaram no segundo estudo (em que participaram 326 pessoas), 73,4% disse que se sentiu muito ou bastante cansado na fase de confinamento e 64% revelou que se sentiu muito ou bastante exausto, tendo havido mesmo quem admitisse (48,2%) que os cuidados prestados à pessoa com deficiência interferiram na sua atividade profissional.

Esse sentimento de exaustão resultou logo na primeira fase, na fase do confinamento. Foi um dado que emergiu com grande força e depois do desconfinamento, apesar de terem sido retomados muitos desses apoios e dessas atividades, ainda há um cansaço significativo e um sentimento de terem sido esquecidos, que é também muito forte entre estes cuidadores e cuidadoras”.

Relativamente a este último dado, o estudo revela que 39,5% dos cuidadores sentiram-se esquecidos durante o período de confinamento, um valor que aumenta para os 42,6% na fase de desconfinamento.

Eu acho que houve de facto pouca atenção e não se ouve sequer debater muito na esfera pública estas problemáticas, como em relação à questão dos idosos, das empresas, mas não se tem falado muito destas pessoas e dos seus cuidadores e portanto esse sentimento de esquecimento é natural que ele emerja”.

Paula Campos Pinto admite que houve algumas medidas específicas para estas pessoas que depois foram sendo tomadas, nomeadamente informação no site do Instituto Nacional para a Reabilitação (INR) ou medidas sobre o uso de máscara tendo em conta as especificidades destas pessoas, mas entende que “foram sempre ou quase sempre tardias e com pouco eco público e mediático”.

Há, portanto, esta perceção, que no meu entender corresponde à realidade, que estas pessoas não estiveram na primeira linha das preocupações dos nossos governantes nesta crise que temos atravessado”.

Outra área que a investigadora defendeu como importante para as pessoas com deficiência foi a educação, pelo seu impacto a longo prazo, apontando que todas as alterações que foram feitas nestes últimos meses nas escolas não tiveram em conta as especificidades dos alunos com deficiência.

Temos vários relatos que demonstram essas dificuldades, quer durante a fase de confinamento em que passamos muito rapidamente para o ensino à distância e estes alunos e as suas necessidades foram os últimos a ser contemplados, quer depois na fase de desconfinamento, quando as escolas já estão a funcionar, mas os apoios para estas crianças e jovens são mais tardiamente organizados e isso tem implicações na sua aprendizagem”.

Os dois estudos vão ser apresentados esta sexta-feira, em Lisboa, no âmbito do V Encontro do ODDH, que este ano tem o tema “A deficiência face à crise pandémica: desafios e respostas”.