Os escritores de policiais tendem, mais do que quaisquer outros romancistas, a fixar detetives, espiões ou simples curiosos particulares no centro do seu universo. Por muito marcante que seja o Príncipe André, não sairá das páginas de Guerra e Paz para as de Anna Karénina; Oliver Twist permanece fechado no seu mundo, sem contacto com David Copperfield; por cada Balzac, que faz Vautrin reincidir em vários dos seus livros, ou por cada Zola disposto a voltar à história da família Rougon-Macquart, há centos e centos de escritores que abandonam as suas personagens na solidão dos livros únicos.
Com as tramas detetivescas, porém, o caso é diferente. Perry Mason, Hercule Poirot, Miss Marple, o Padre Brown, Sherlock Holmes, até o português Jaime Ramos, de Francisco José Viegas, todas as grandes mentes da literatura de mistério tendem a reaparecer em novas situações criminosas ou secretas.
E se George Smiley, criado por John le Carré (que morreu a 12 de dezembro aos 89 anos) não é exatamente um detetive, se o seu trabalho para os serviços secretos britânicos, o The Circus, tem mais que ver com a denúncia de redes de espionagem do que propriamente com a resolução de crimes arbitrários à maneira policial clássica, a verdade é que Smiley entra nesta grande categoria das personagens reincidentes.
John le Carré, o espião-escritor que foi criado e treinado entre mentiras
A catapulta de Smiley para a fama é a trilogia em que Karla, nome de código para o chefe dos serviços secretos de Moscovo, se torna o principal vilão. É nestes livros (Tinker Taylor Soldier Spy, The Honourable Schoolboy e Smiley’s People, em português A Toupeira, O Ilustre Colegial e A Gente de Smiley, publicados em 1974, 77 e 79) , em que Smiley persegue um contendor obscuro e nunca visto, que as histórias melhor casam com o feitio de Smiley. Embora Smiley seja a personagem principal logo no primeiro romance de Le Carré, embora apareça no seu grande êxito O Espião que Veio do Frio e envelheça com o autor (no peregrino secreto já está mesmo reformado), é nesta trilogia que se torna mais nítida a importância da personagem num estilo de romance que parece poder dispensá-las.
Seria natural que uma literatura de crime ou espionagem, mais concentrada no desvendar de situações aparentemente insolúveis, fosse mais desprendida dos seus heróis. Afinal, aquilo que está no centro dos argumentos policiais – a possibilidade de, a partir dos indícios e, com o uso da lógica, chegarmos às conclusões – dispensaria a personalidade. A frieza universal da razão seria suficiente para que o enredo se mantivesse. Qualquer pessoa, com as mesmas premissas, com a mesma atenção aos detalhes, deveria poder chegar às mesmas conclusões. A personalidade dos agentes secretos ou dos detetives seria, assim, marginal para a construção das novelas.
Ora, aquilo que George Smiley, como outros grandes agentes secretos ou detetives, nos mostra é precisamente o corte que há entre as premissas e as conclusões. O trabalho da lógica não nos é dado automaticamente, há um esforço a que a mente se obriga e que só é espoletado por uma série de fatores que estão fora da razão. Os grandes romances policiais não são, assim, romances sobre a lógica ou, pelo menos, apenas romances sobre a lógica. O mais interessante na mecânica do enredo é aquilo que leva a que a lógica se ative. O que é que leva Smiley a perceber que o seu interrogatório não é, afinal, responsável pelo suicídio de um modesto trabalhador do The Circus?
Aquilo que motiva o funcionamento do cérebro é, assim, a história de uma personalidade. Se há casos em que os cheiros ou a desordem do ambiente causa a estranheza, outros há em que são as convicções dos agentes que fazem o detetive desconfiar; a mente de Sherlock Holmes e a do Padre Brown carburam com combustíveis diferentes, e é a relação deles com aquilo que os faz funcionar que se torna o centro do romance e que os torna relevantes para a História.
As situações que Smiley resolve não são situações que pudessem ser resolvidas por Perry Mason; a frieza com que prende Karla nunca poderia estar no Padre Brown. O próprio enredo é, assim, a condição de possibilidade da personagem e, nisso, John Le Carré foi talvez o escritor de mistério ou de livros detetivescos mais arguto. Não há nos livros de George Smiley aquela quantidade de suspeitos e indícios contraditórios que tornam empolgantes os livros de Poirot; as histórias de George Smiley são mais pausadas e constituem, acima de tudo, reflexões sobre os métodos. A ideia de um serviço secreto cheio de burocracia, de um agente sensato e algo apagado, com aquele tipo de personalidade que quadra bem com a segunda divisão da Academia e com a classe média inglesa de meio do século, o contraste desta personalidade com um inimigo cada vez menos escrupuloso e contra quem a luta se revela cada vez mais difícil por causa das amarras burocráticas, tudo isso torna a carreira de Smiley uma espécie de bomba-relógio, à espera de explodir num ato horrendo ou na menos ética das detenções.
Smiley não parece desenhado para um livro; parece um verdadeiro funcionário público a quem calhou em sorte um papel de relevo na sombra da guerra fria, um papel heroico sem atos heroicos, que por isso mesmo releva mais tanto a personalidade como a causa. Smiley está muito longe de ser um 007, não é elegante, nem especialmente audaz; é, essencialmente, um lutador de bastidores, com o lado mesquinho e indireto que esta luta, fora da ficção mais excitada, deve ter. Não é o agente secreto mais empolgante, mas a sua luta é. E isso dá-nos a sensação de que, por muito que não estejamos a ler o melhor herói, estamos sempre a ler o herói certo.