Nos tempos áureos das batalhas individuais entre Cristiano Ronaldo e Lionel Messi, havia quase uma guerra surda na imprensa desportiva espanhola para saber se o português e o argentino iam ou não às cerimónias e, sobretudo, se as famílias estariam ou não presentes. Era a partir daí que se percebia melhor para onde iria o prémio. Era, no passado – olhando para jornais como a Marca, o As, o Sport ou o Mundo Deportivo, as notícias sobre o prémio The Best eram poucas e tinham destaque secundário até ao momento da atribuição do troféu. Se a isso juntássemos a opinião maioritária de selecionadores, ex-jogadores e publicações, o vencedor já era “conhecido”.

Lewandowski ganha prémio The Best, Ronaldo eleito para o Melhor Onze mundial do ano

Naquela que foi a sua maior época de sempre, com um total de 55 golos em 47 jogos realizados entre Bundesliga, Taça da Alemanha, Supertaça e Liga dos Campeões, Robert Lewandowski recebeu o prémio The Best, sendo apenas o segundo a furar a hegemonia de Messi e Ronaldo desde 2008 depois de Luka Modric (2018). Mas se os números do polaco foram avassaladores, ao nível dos melhores tempos do despique individual entre os dois jogadores que marcaram a história do futebol nos últimos 15 anos (e na História, como saiu do Melhor Onze de sempre revelado pela France Football), outros fatores contribuíram para um triunfo há muito anunciado e que já se tinha verificado no galardão de Melhor Jogador do Ano da UEFA. Nomeadamente, o sucesso de uma equipa e de um clube.

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O maior (à esquerda) entre os 11 maiores: Ronaldo eleito para o Melhor Onze da História da France Football

A questão dos troféus coletivos e a importância da hegemonia do Bayern

A Europa já não está propriamente habituada a equipas que ganham tudo o que têm para ganhar numa só época, algo que nem o Liverpool conseguiu quando conquistou a Champions em 2019 – naquela que foi a competição mais disputada de sempre na Premier League, o Manchester City sagrou-se campeão com um ponto de avanço. Quase parecia que, depois do Barcelona do tiki taka com Pep Guardiola, dificilmente haveria um conjunto capaz de varrer todas as provas que disputava numa só temporada e foi isso que aconteceu com o Bayern de Hansi Flick, com uma série de mais de 30 jogos onde ganhou sempre e consentiu apenas um empate, que festejou Bundesliga, Taça da Alemanha, Supertaça, Liga dos Campeões e Supertaça Europeia. Aquele que é para muitos considerado o melhor clube do mundo analisando todas as dimensões (desportiva, financeira, associativa e organizativa) teve o sucesso procurado nas quatro linhas com Lewandowski a ser a cara da equipa pelos 55 golos marcados em 47 jogos. Ronaldo ficou-se pelos 37 golos em 46 jogos mas, mais do que isso, perdeu também esta corrida pela aposta falhada que a Juventus fez em Maurizio Sarri para suceder a Massimiliano Allegri e que valeu apenas uma Serie A.

Bayern, provavelmente o melhor clube do mundo. Provavelmente não, de certeza. E tem muito a ensinar aos outros

A diferença entre marcar golos por uma equipa ou para uma equipa

Os primeiros tempos de Hansi Flick no comando do Bayern depois da saída de Niko Kovac não foram pródigos nos resultados e nas exibições mas, um mês depois, com o devido tempo para fazer as mudanças necessárias, recuperar os pesos pesados que tinham perdido protagonismo, encontrar o melhor contexto para fazer evoluir os elementos mais novos e criar uma dinâmica de jogo com e sem bola que se tornou num rolo compressor capaz de ganhar em termos internos mas também humilhar o Barcelona nos quartos de uma Champions, o técnico colocou os bávaros em condições de ganhar todos os troféus. Nessa mecânica, onde Kimmich, a lateral ou como médio, era tão ou mais importante do que Lewandowski, o polaco encontrou a plataforma para fazer a sua melhor temporada de sempre, falhando apenas a Bota de Ouro pelos golos apontados por Ciro Immobile pela Lazio na parte final da Serie A. O número 9 marcou por uma equipa, ao contrário de Ronaldo que marcou para uma equipa: a Juventus fez com Sarri uma época globalmente abaixo do que fizera com Allegri e o português apareceu mais vezes a resgatar a equipa de maus resultados do que a materializar a produção da equipa em bons resultados como Lewandowski.

Sarri pediu 40 golos a Ronaldo, Ronaldo pede uma equipa a Sarri (a crónica do nulo da Juventus)

O adiamento do Europeu de 2020 que também influenciou as contas

As grandes competições de seleções podem não ter o peso que tiveram por exemplo em 2006, quando Cannavaro surpreendeu a concorrência e bateu Zidane e Ronaldinho na luta pelo FIFA Player of the Year e Buffon e Henry na Bola de Ouro, mas são pontos importantes em cada ano. Um caso prático: a enorme diferença entre Ronaldo e Messi no ano de 2014 seria muito esbatida caso o argentino se tivesse sagrado campeão mundial pela primeira vez na final do Mundial com a Alemanha. Outro: a vitória de Modric na Bola de Ouro e no The Best em 2018 não teria sido tão indiscutível como foi caso a Croácia não fizesse a extraordinária campanha que fez no Mundial, onde só perdeu com a França. O facto de haver um adiamento do Campeonato da Europa de 2020 pela pandemia foi teoricamente um ponto que anulou não só a possibilidade de Ronaldo ter outros argumentos para lutar pelo The Best mas também as hipóteses de outros nomes como Mbappé ou Neymar poderem intrometer-se no top 3 – ou até mesmo Manuel Neuer ou Kimmich, caso a Alemanha conseguisse recuperar o título que perdeu em 2018.

Luka Modric interrompe hegemonia de Ronaldo e Messi e sagra-se melhor jogador do mundo para a FIFA

A vitória de Messi em 2019 e a “anomalia democrática” de Iniesta

Um artigo de opinião em 2018 de Pascal Ferré, chefe de redação da France Football, pedindo desculpa a Andrés Iniesta por nunca ter ganho a Bola de Ouro devido a uma “anomalia democrática”, funcionou como um momento em que muitos consideravam que tinha chegado ao fim o reinado de Ronaldo e Messi que se arrastou ao longo de mais de uma década. Ou ganhava um, ou ganhava outro – e havia um terceiro que se juntava para fechar o pódio. Nesse mesmo ano, Luka Modric, campeão europeu pelo Real Madrid pela terceira vez consecutiva e vice-campeão mundial pela Croácia, foi o vencedor. No entanto, foi ainda uma exceção: em 2019, após uma época em que marcou 51 golos e ganhou a Liga, o argentino ficou à frente de Van Dijk por sete votos, com o central holandês a perder na época em que se assumiu como o melhor defesa do mundo e que foi campeão europeu pelo Liverpool (além de vice-campeão inglês e finalista da Liga das Nações). Agora, o que estava em cima da mesa era a hipótese de ganhar Ronaldo, Messi ou um terceiro jogador com números até melhor do que ambos e que ganhou tudo o que havia para ganhar. Ou seja, se já existia uma certa vontade de começar a “abrir” mais a votação a outros jogadores, os trajetos de Lewandowski e do Bayern foram argumentos demasiado fortes para que o prémio do The Best fosse para o polaco. E assim se evita mais um caso de “anomalia democrática” como a de Iniesta.

Pela sexta vez, Lionel Messi é o melhor jogador do mundo. Argentino bateu Ronaldo e Van Dijk e venceu o The Best da FIFA