É a primeira condenação de mutilação genital feminina desde que se tornou crime em Portugal, em 2015. Esta sexta-feira, o Tribunal de Sintra condenou a três anos de prisão efetiva uma mulher, também ela mutilada na infância, que autorizou esta prática à filha de um ano e meio. Terá ainda de pagar uma indemnização de 10 mil euros à criança.

O coletivo, presidido pelo juiz Paulo Almeida Cunha, entendeu que não foi a mãe então com 19 anos que fez a mutilação, mas foi ela que autorizou que fosse feita. “A arguida não soube proteger a filha”, disse o juiz.

O crime ocorreu entre o dia 4 de janeiro de 2019 e 15 de março do mesmo ano. Nessa altura, R. Djalo, então com 19 anos, vivia na Amadora com a mãe e duas irmãs, mas viajou com a filha para Guiné-Bissau — que em 2011 aprovou uma lei que criminaliza a mutilação genital feminina. Foi durante essa estadia de dois meses e meio no país africano de que é natural que a menina de um ano e meio foi submetida a uma mutilação genital.

O caso foi descoberto em março de 2019, quando a mulher levou a filha, M. Balde, a um centro de saúde porque estava vermelha na zona genital. Na altura, R. Djalo explicou que tinha acabado de chegar de uma viagem à Guiné-Bissau, de onde é natural, e associou o problema ao uso de fraldas num país tão quente. Os médicos detetaram que a criança sofria de uma infeção urinária só que o motivo seria outro: uma excisão genital. As profissionais de saúde pediram de imediato uma perícia médica que viria a confirmar as suspeitas.

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No entanto, durante o julgamento, a mãe de M. Balde — mutilada na infância e de etnia fula, uma das que mais pratica este ritual — assumiu-se contra a mutilação sexual feminina e garantiu aos juízes que, durante a estadia na Guiné-Bissau, não deixou a filha à guarda de outras pessoas que a pudessem ter submetido à prática.

Mas, no entendimento dos juízes, R. Djalo “atuou com o propósito alcançado de cortar genitalmente a sua filha”. Tenha sido ela ou alguém a seu pedido, a mulher provocou “dores, lesões, sequelas permanentes e aptas a afetar a fruição sexual” da menor.

Ministério Público pede prisão para arguida em primeiro julgamento sobre mutilação genital em Portugal

Em Portugal, a mutilação genital feminina foi autonomizada enquanto crime em 2015 e prevê uma pena de dois a 10 anos de prisão para quem exercer a prática e de até três anos para quem realizar os atos preparatórios da mutilação. Em 2014, foram sido registados dois inquéritos na Amadora, mas foram investigados como um crime de ofensa à integridade física e acabaram arquivados, informou fonte da Procuradoria-Geral da República ao Observado. Em 2015, também foi investigado outro caso, mas como um crime de ofensa à integridade física.

Desde que a mutilação genital feminina se tornou crime, entre 2016 e 2020, já houve 11 inquéritos abertos pelo MP: oito foram arquivados, dois ainda se encontram em investigação. O outro é o de R. Djalo — o primeiro caso a chegar a tribunal e a ver uma condenação.

Primeiro caso de mutilação genital feminina chega aos tribunais portugueses

Advogado diz que “tribunal foi mais duro” do que devia para mãe acusada de mutilar a filha

O advogado da mãe que foi condenada esta sexta-feira a três anos de prisão pela mutilação genital da sua filha considera que o “tribunal foi mais duro” do que devia e, por isso, admite recorrer da sentença.

Em declarações aos jornalistas, à porta do Tribunal de Sintra, após a leitura do acórdão, Jorge Gomes da Silva reconheceu ter ficado “surpreendido” com a sentença daquele que foi o primeiro caso de mutilação genital feminina a ser julgado em Portugal.

Vamos pegar numa jovem de 20 anos e mandar para a cadeia. Vale a pena? Sai de lá o quê? Só para mostrar ao mundo, a Portugal, que agora há uma decisão que põe fim a essas práticas? Acho que é injusto”, reagiu.

Admitindo que a decisão tenha tido o objetivo de “dissuadir” que a prática possa vir a acontecer no futuro, o advogado de defesa destacou os fatores atenuantes da arguida — a idade (tinha 19 anos na altura) e a inexistência de antecedentes criminais — e frisou que “não ficou provado que foi a própria que praticou os factos”. Assim, Jorge Gomes da Silva admite recorrer da decisão, após analisar o acórdão e conversar com a sua constituinte. “Em princípio vamos recorrer, porque entendemos que pelo menos a pena suspensa (…) seria mais justa”, adiantou. Originário da Guiné-Bissau, o advogado entende que o tribunal não estava preparado para julgar um caso como este, com um contexto e um enquadramento tão específicos.