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Tiger Woods. A glória e a desgraça do verdadeiro rei-tigre (e daqueles que lhe construíram a história)

Este artigo tem mais de 3 anos

“Tiger”, documentário da HBO, serve-nos Tiger, o messias, Tiger, o demónio, e até Tiger, o ressuscitado. Mas nós queremos mesmo falar é dos evangelistas em volta deste anjo-demónio.

O documentário, em duas partes, mostra todo o percurso de uma das maiores estrelas do desporto mundial dos últimos 25 anos e um dos nomes maiores da história do golf
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O documentário, em duas partes, mostra todo o percurso de uma das maiores estrelas do desporto mundial dos últimos 25 anos e um dos nomes maiores da história do golf

O documentário, em duas partes, mostra todo o percurso de uma das maiores estrelas do desporto mundial dos últimos 25 anos e um dos nomes maiores da história do golf

Ninguém como os norte-americanos para fazer deuses – e ninguém como eles para os destruir. Geralmente, uma dessas marcas cheias de valores e princípios está envolvida no processo. A história de Tiger Woods, agora contada num novo documentário da HBO em dois episódios, é mais um exemplar perfeito dessa trituradora: os Homeros e os Vergílios do nosso tempo, porventura até os evangelistas, estão ali, algures entre Madison Avenue, os departamentos de marketing das grandes multinacionais e as redações dos tabloides. E com o mundo inteiro a olhar, já ninguém é inocente.

“Tiger” é um documentário com pouco mais de três horas, dividido em duas partes. Muito ao estilo contemporâneo, as etiquetas das plataformas de streaming substituem-se à autoria (note como reduzem a ficha técnica a uma janela minúscula aos primeiros segundos, mudando imediatamente para o conteúdo seguinte se você, por acaso, não for um maluquinho que se interessa por ver quem realmente fez o que acabou de ver e correr para o rato ou para o comando “pedir” para continuar a ver os créditos – há tarados para tudo). Dizemos que um documentário é da HBO ou da Netflix como, no tempo dos grandes estúdios, se dizia que um filme era da Warner ou da MGM e era difícil encontrar o nome do realizador no cartaz.

Há uma certa verdade nisto, porém. “Tiger” é quase um documentário sem autor, o exemplar perfeito de um género a que poderíamos chamar “Sandra Felgueiras com meios e mais alguma discrição”. São objetos perfeitos, incríveis na narrativa, encontram exatamente quem tem de falar, as pessoas dizem exatamente o que têm de dizer, ilustradas pelas imagens de arquivo que estávamos a pensar que era mesmo incrível se existissem. Tudo isto dá um trabalho louco. Um trabalho louco que tem ainda a virtude de se fazer passar como se nada fosse. Mas esforça-se tanto por ocultar esse esforço, essa autoria, por parecer tão objetivo, que começa, de facto, a não ter assinatura. “Tiger” é como se não tivesse autor, ângulo, intenção. E há sempre. Nenhuma obra de arte é um calhau encontrado na praia. Não há verdades absolutas; há ângulos, perspetivas, pontos de vista. E é cobarde não os assumir.

[o trailer de “Tiger”:]

Quem quiser ser ligeiramente mais paciente, toma nota dos autores na ficha técnica e vai à procura de quem são. E quem são? A Jigsaw Productions de Alex Gibney, responsável, entre outros, pelo documentário que, ainda há bem poucos anos, expunha a história de outro anjo caído do desporto: “A Mentira de Armstrong”, e vencedor do Óscar para Melhor Documentário em 2008 por “Um Táxi para a Escuridão”, que investigava a prática da tortura nos interrogatórios norte-americanos na guerra no Afeganistão. Na cadeira da realização, dois Matthews: um estreante, Matthew Hamacheck, até aqui editor (por exemplo, de “Amanda Knox”, documentário sobre a estudante americana condenada pela morte de uma colega em Itália) e Matthew Heineman, nomeado ao Óscar e vencedor de um Emmy em 2016 por “Cartel Land”, acerca do tráfico de droga na fronteira EUA-México.

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Conseguimos, portanto, ver de onde isto vem: os autores de “Tiger” estão na outra ponta da corda dos Tiger Woods. São a última parte da indústria transformadora que se alimenta do fabrico e destruição de deuses. Pedem-nos um juízo moral que já não estamos disponíveis para fazer. São, de alguma forma, os príncipes dos tabloides, paparazzi de classe. Documentaristas de talento que escolheram ficar-se pela dissecação dos heróis, pelo serviço de autópsias aos deuses, quando caem do altar.

Se temos alguma simpatia por Tiger Woods? Nenhuma em particular. Pelo golfe? Ainda menos. Acreditamos que tudo quanto há a dizer sobre o golfe ficou dito naquele maravilhoso stand-up de Robin Williams: trata-se da invenção de um escocês sádico depois de demasiados whiskies, de que não conseguiríamos nomear um único praticante para além de Tiger antes deste documentário e partindo do pressuposto de que futebolistas reformados não contam. Mas os seus dissecadores também não têm – e isso não é bonito. Não quando mostram tanto o sofrimento das suas vítimas como a dos predadores a que, minutos antes, apontam o dedo.

A história de Tiger começa aos dois anos de idade, quando já ia à televisão com o pai mostrar o seu swing perante uma plateia deliciada com as habilidades do pequeno animal de circo. Acompanha a longa obsessão de Earl Woods, ex-boina verde e mulherengo compulsivo, em fazer do filho o novo messias a quem prenunciava um impacto “maior do que Mandela, maior do que Gandhi, maior do que Buddha”.

"Tiger" recupera os mais importantes momentos da vida de Tiger Woods

A Nike agarrou a ideia e tentou vendê-lo desde cedo como o profeta negro num desporto de brancos, o papel do porta-voz de uma comunidade que o próprio Tiger embaraçou quando, poucos anos mais tarde, negou integrar (dizia-se “cablinasian”, acrónimo inventado pelo próprio para aglutinar “caucasian”, “black”, “indian” e “asian”, descrevendo a sua origem multiétnica que ia do índio americano à Tailândia). Segue Tiger até ao apogeu enquanto provável maior golfista de todos os tempos e, depois, em queda livre: rutura com o pai, morte do pai, escândalos extraconjugais com atrizes porno e acompanhantes de luxo, divórcio, abuso de drogas “legais”, prisão. A oposição entre o homem que o pai profetizava ser “o escolhido” e o vulto decadente filmado pelas câmaras de segurança numa esquadra após ser detido por conduzir sobre o efeito de psicotrópicos, é evidente e escarrapachada pelos documentaristas desde o início. Diz-nos: vejam, vejam a deceção, no que ele se tornou, como se pode ir tão baixo. Isto, claro, para o recuperar no fim.

Tem-se escrito a propósito de “Tiger” sobre a perspetiva racial, do ídolo que aceitou ser um porta-voz dos negros quando isso lhe convinha e o negou quando deixou de precisar. Também se podia escrever acerca de como usou as mulheres com quem manteve casos, alimentando a ideia, pelo menos a algumas, de que eram “a única” e aquela que ele, verdadeiramente, amava. Todavia, é evidente, no fim de tudo, que Tiger Woods não é vítima ou culpado; é ambos, como Lance Armstrong, como Michael Jackson, como sucessivos heróis do desporto e da cultura pop que insistimos em transformar em referências morais, Gandhis e Mandelas, quando eram apenas tipos extraordinariamente bons no swing ou no solo.

Mas o momento que insiste em não nos abandonar depois do visionamento de “Tiger” é aquele em que um “comentador” televisivo qualquer chama “gold-digging whore” a Elin, ex-mulher de Woods, depois de anos de mentiras, da descoberta de cerca de 15 casos extraconjugais e de um acordo de divórcio de 250 milhões de dólares. Afinal, aqui estamos nós, os mesmos seres humanos, a construir heróis porque precisamos de referências para venerar, a destruí-los porque precisamos de os odiar por serem mais do que nós, e depois a destruir as vítimas deles porque chega a esse nível de crueldade a desumanização da nossa cultura canibal.

No fim, claro, se algum deles ainda se aguentar de pé, ainda lhes damos uma oportunidade para a ressurreição. Porque não resistimos a uma boa segunda oportunidade, a ver um cão ferido brincar outra vez. Faz-nos sentir tão humanos, tão magnânimos.

“Tiger” é um bom documentário, que tem a virtude de ter tudo o que se espera dele e o defeito de não ter nada além do que o que se espera dele. E consagra um género que, voluntária ou involuntariamente, cada vez nos fala menos do sujeito documentado e mais de nós, esse admirável, inesgotável, género humano.

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