Passados quase trinta anos, “Fishing With John”, a série de seis episódios, onde John Lurie levava amigos – Tom Waits, Dennis Hopper ou Jim Jarmusch – a pescar, pode ser vista como uma percussora de “Comedians in Cars Getting Coffee” ou até “Dinner for Five”. A grande diferença é que em 1991, John Lurie não estava preocupado em fazer amigos com o seu programa: só queria fazer um programa de pesca com os amigos que já tinha.

Um retrato de outro tempo, de outra cultura do tecido das artes. “Fishing With John” também não é bem um programa de pesca. Porque John Lurie – percebe-se rapidamente – não sabe muito disso. Mas fê-lo na mesma, com a despreocupação e coolness reais e com um narrador – na intensa voz de Robb Webb – que dá mais descrédito ao descrédito do programa. Leitor, acredite, é um programa delicioso. Trinta anos depois, John Lurie regressa com outro “With John”, desta vez “Painting With John”. A grande diferença? Desta vez, John sabe realmente pintar.

A série de seis episódios, de vinte minutos cada, disponível na HBO Portugal, é um tratado sobre a vida. Lurie, com uma carreira artística em várias frentes, como músico (várias bandas-sonoras e co-fundador dos Lounge Lizards), ator, realizador (é ele que assume o comando dos “With John”) e pintor, atividade à qual se tem dedicado mais nos últimos anos.

Os trinta anos entre os diferentes “With John” sentem-se e com eles a reclusão. Este “Painting With John” exclui os amigos e consolida-se como um diário não confessional, algo como uma série documental onde o autor e personagem estabelecem uma ligação direta com o telespectador. E nas entrelinhas há o isolamento, de quem fugiu da grande cidade e sobreviveu a um cancro que lhe retirou as capacidades de exercer algumas das capacidades. A pintura tornou-se também um refúgio.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

[o trailer de “Painting with John Lurie”:]

“Painting With John” evita, contudo, a historieta da sobrevivência e fala de vivência, tal como há trinta anos John Lurie o fazia com os amigos. Agora sem a excitação controlada dos 40, mas com a calma e experiência dos 70. Ver e ouvir John Lurie a discursar livremente enquanto pinta entra como uma bênção. Em tempos como os de agora – e até saltemos o facto de se estar outra vez em confinamento –, é o tipo de coisa que reconforta para se poder olhar para a frente.

Há aqui humor e naturalidade. Mesmo que com algum ensaio, mesmo que seja algo provocado, um ato cinematográfico, artístico. Os episódios começam com imagens captadas por um drone em volta da propriedade de John Lurie. Contudo, o plano não vai de acordo com a vontade do realizador e há um jogo – verdadeiro ou não, mas isso não interessa – com o erro, o falhar. Uma forma de convidar o espectador – o prevenido e desprevenido – para o que aí vem, expondo as vulnerabilidades de alguém que vai estar a falar para uma câmara, enquanto pinta, com tantas certezas.

O drone torna-se uma piada recorrente. Uma exposição de limitações físicas e de dificuldade em criar um quadro filmado com as imagens captadas que reproduza, de outra forma, as plantas e árvores que John Lurie pinta. O realizador e, em segundo plano, o protagonista e autor, quer ser visto no seu programa como um humano e não um artista. Um humano com as limitações e a finitude que a vida implica. Por isso, as palavras ressoam, as histórias que contam marcam, ficam, dão que pensar. O diário não confessional torna-se um espelho do telespectador, para pensar no que anda aqui a fazer.

Não é para ficar deprimido. É para aprender. No primeiro episódio, Lurie conta uma história sobre si, os seus pais e irmãos, de como os três foram educados – num ato irrefletido – para serem artistas. É uma lição de parentalidade, não de como fazer bem, mas de como os pais devem procurar e perceber os estímulos das crianças. Nada de novo, mas é o valor da reflexão, a conclusão de John que entra pela alma e dá um certo reconforto pela transparência do raciocínio.

Nesse mesmo episódio, enquanto pinta, fala das árvores e das folhas daquela pintura e diz que são árvores e folhas tristes. O “triste” entra como uma bomba – e algo verdadeiramente cómico – por ser uma caracterização inesperada, uma interpretação artística – do autor – que raramente é comunicada em discurso direto a quem está do outro lado. Nós.

Há qualquer coisa de essencial em “Painting With John”. A televisão dá tanta ficção – e boa – mas dá muito pouco de humano nos últimos anos. Humano não tem a ver com verdade ou realidade, tem a ver só com isso, humano. Pessoas a serem pessoas e orgulhosas disso, seja isso realidade ou ficção, e a refletirem sobre a realidade. Se “Fishing With John” contava belíssimas histórias de amigos a serem amigos, “Painting With John” é um dos mais bonitos relatos audiovisuais dos últimos anos sobre alguém a ser alguém, simplesmente isso. Sem uma narrativa como cenário, a narrativa está no momento. É tão bonito ver John Lurie a acontecer. Leitor, acredite, é televisão que é uma delícia. Um comprimido de sanidade para o agora.