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O corpo de Elizabete Francisca é o nosso à procura de abrigo

Este artigo tem mais de 3 anos

Elizabete Francisca pensa a gentrificação e a crise da habitação através de um espectáculo que usa o gesto, a dança, o texto e objetos. O que sobra das cidades? Na Sala Online do Teatro D. Maria II.

Elizabete Francisca admite que não gosta especialmente de levar assuntos sociais e políticos para as suas criações, mas neste caso sentiu necessidade de "avançar"
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Elizabete Francisca admite que não gosta especialmente de levar assuntos sociais e políticos para as suas criações, mas neste caso sentiu necessidade de "avançar"

Elizabete Francisca admite que não gosta especialmente de levar assuntos sociais e políticos para as suas criações, mas neste caso sentiu necessidade de "avançar"

Uma intérprete amachuca o seu casaco bege. Empurra o braço ao mesmo tempo que o tenta segurar, como se este lhe quisesse escapar, como se tivesse batimento próprio, energia autónoma, como se não pertencesse à intérprete do tal casaco bege — e será que alguma coisa lhe pertence? O momento inicial de Dias Contados — nova criação de Elizabete Francisca estreada em Fevereiro de 2020 no GUIdance e agora reapresentada pelo Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII) em versão online, instituição que planeava acolher o espectáculo ao vivo por esta altura, não fosse a pandemia — é uma resistência aos movimentos que não controlamos. Este é um espectáculo que explora a gentrificação e a crise da habitação através de vários meios — dança, texto, trabalho com objetos, contemplação — e que está disponível até dia 5 de Março, em vídeo e em multicâmara, na Sala Online do TNDMII (acesso mediante pagamento de 3€).

Esta é apenas a segunda criação, a título individual, de Elizabete Francisca para palco — a primeira foi o solo Tsunamismo. Recital para duas cordas em M apresentada em 2013, na Culturgest; pelo meio, co-criações com Teresa Silva, Vera Mantero e colaborações artísticas com alguns dos mais interessantes artistas na área da dança e da performance: Meg Stuart, Mark Tompkins, Tânia Carvalho, Mariana Tengner Barros, Loïc Touzé, Ana Galante & João Borralho.

No percurso de Elizabete Francisca podemos encontrar uma certa resistência em habitar e pensar o palco, como se por vezes as possibilidades que naquele espaço encontra “não abarcassem todo o universo artístico de aproximação com o público”. “Fizemos outro tipo de projectos”, explica. “Por exemplo, o Mais Pra Menos Que Pra Mais [co-produção entre a Culturgest e o Teatro Maria Matos], que era um projeto em hortas urbanas em que trabalhámos em várias outras dimensões. Aí, criar para palco não era o nosso objectivo”, admite antes de prosseguir: “Durante algum tempo, de facto, perdi o interesse em pensar peças para palco. E esta Dias Contados surge também como um convite d’O Rumo do Fumo para retomar essa prática, porque se fosse por mim acho que não teria proposto tão rapidamente voltar a criar para palco dessa maneira mais convencional.”

A relação que Elizabete Francisca alimenta com multidisciplinariedade não é nova. Aliás, podemos mesmo dizer que está na origem da sua criatividade

António MV

No meio disso, foi explorar o cinema e co-realizar um filme — “O Gesto” — com Francisca Manuel e Jennifer Bonn e fazer outras coisas, ser atraída por outros registos e formas de fazer arte:

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“Nunca planeei muito ao longo do tempo, tenho andando a pensar nisto, fui sempre sendo um bocado levada pelas propostas que iam surgindo e por novas experiências e isso também pode explicar alguma da minha falta de regularidade em termos de criação individual”, confirma.

A relação que Elizabete Francisca alimenta com multidisciplinariedade não é nova. Aliás, podemos mesmo dizer que está na origem da sua criatividade. Antes de decidir estudar dança na Escola Superior de Dança de Lisboa, Elizabete licenciou-se em Design Industrial na ESAD — Escola Superior de Artes e Design e foi aí, através do encontro com gente que já pensava a performance e a dança pelo veículo do design, que chegou aqui e que se tornou uma das mais interessantes vozes da dança portuguesa. Isto sem referir o começo absoluto: com cinco anos já era membro do Rancho Folclórico de Lobão — sua vila natal, no concelho de Santa Maria da Feira — e quando chegou à ESAD sempre explorou o design de forma diferente:

“Normalmente, o design para ser bom tem de ser funcional e os objetos têm de ser invisíveis. E eu colocava problemas nos objetos para eles se tornarem visíveis. Por exemplo, um copo com um furo, em que para beberes tens de colocar o dedo senão aquilo derrama, objetos que criam afetividade, ou seja, o corpo e o gesto já estavam muito presentes em mim, apesar de eu não ter grande consciência disso na altura.”

Dias Contados — que na apresentação em Guimarães tinha Elizabete Francisca em cena e que, entretanto, se substituiu por Júlia Salem, devido a uma lesão e consequente operação a que a criadora foi submetida — advém de uma nota de despejo ou de uma não-renovação do contrato de arrendamento que a criadora recebeu em agosto de 2017. “Não tinha condições financeiras para arrendar uma casa com os preços que estavam a ser praticados nessa altura — e que continuam. O facto de perder a casa ia mudar a minha vida radicalmente, estava a mudar e estava a perturbar-me, não conseguia pensar noutra coisa e nem sequer tinha estabilidade para criar alguma coisa fora desse contexto. Falei com O Rumo do Fumo e disse: ‘A única coisa que posso fazer agora é sobre isto.’ É um assunto social e político, que é algo que não gosto muito de trazer para as criações, mas neste caso decidi avançar”, admite.

Entrou em contacto com a Habita!, uma associação pelo direito à habitação e à cidade, que a fez ter contacto com muitas histórias bárbaras e aparentemente camufladas — falamos de despejos sem qualquer tipo de dignidade no Bairro 6 de Maio, no Bairro da Jamaica, no Bairro da Torre. “Só que isso começou a atingir os centros da cidade e, de certa maneira, outra classe social — é sempre um bocado difícil falar disto, porque até a classe média já é precária —, mas quando este problema começa a atacar a classe média o assunto da crise da habitação começou a ser mais falado. Foi nesse contacto com a Habita! que percebi a profundidade do problema”, garante.

"É quase como se fossem os restos de uma casa, o que fica, os escombros, a ideia foi trabalhar essa metáfora, o que fica depois de uma demolição", diz-nos Elizabete Francisca

Tudo isto a acontecer e o país, aparentemente, em pico de forma, já revigorado de crises anteriores, já de fato de gala para atrair investimento internacional, jardins no meio de rotundas, coisas do género. Até um certo tom de voz irritantemente positivista, muito bem retratado por Elizabete Francisca num monólogo em que Vânia Rovisco — a outra intérprete a par de Júlia Salem — começa a descrever um T4 moderno e atrativo. Lareira eléctrica na sala com mais de 60 metros quadrados, master suites, camas queen e king size, cozinha com ilha e zona social lounge, por aí.

Uma zona profundamente irónica, onde fica exposta uma ideia muito em voga. O que precisamos é de avenidas largas e fachadas brancas, clean, ruas bem pavimentadas, isso é que é progresso, é isso que temos de conquistar:

“Sim, as cidades são fantasmas, ninguém vive no centro, se pensarmos em Londres e Paris elas já passaram por esse processo de gentrificação. Esse embelezamento dos espaços, uma certa homogeneização dos edifícios, muito europeia, que são feitos para que as pessoas se reconheçam em qualquer sítio para onde se desloquem, por isso é que em algumas zonas atualmente podes encontrar gastronomia dinamarquesa, holandesa, por aí. É a alteração do paradigma do viajante, o turista já não vai descobrir, já não vai para o desconhecido, vai ao Starbucks”, clarifica.

Mas não fica por aí. Percorre também o discurso da meritocracia, que diz que “quem quer mesmo pode, quem quer muito consegue, há pessoas que querem trabalhar, há pessoas que preferem viver do subsídio de desemprego”. E isto é só mais um sintoma do que se passa na cidade, defende: “Há um termo novo que se tem falado muito, relacionado com gentrificação, que é o ‘afidalgamento das cidades’, que vem de ‘afidalgar’, e que se relaciona obviamente com a burguesia”, explica. É o fim das associações centenárias onde podíamos beber copos de forma relativamente livre; é o fim das esplanadas às quais já estávamos habituados; é o fim da identidade e o viva à homogeneização.

Em cena, um cenário frio e de grandes dimensões, composto por chapa metálica e falta de amor, expõe as intérpretes a uma escala que muito diz sobre estes tempos: nós aqui em baixo e eles lá em cima. Um trabalho de Elizabete Francisca em colaboração com o artista plástico Vasco Costa e que tão bem se relaciona com a composição musical e sonoplastia de João Bento — que envolvem sons da cidade, obras, avenidas cheias de gente, aparentes vernissages, o som do cenário através de microfones de contacto, ou seja, o som do metal.

Tudo isso faz ainda mais sentido quando, lá mais para o final de Dias Contados, as duas intérpretes se demoram na relação com objetos — Vânia com um tubo de canalização já morto e de grandes dimensões; Júlia com o sistema de molas que habita o interior de um colchão. “É quase como se fossem os restos de uma casa, o que fica, os escombros, a ideia foi trabalhar essa metáfora, o que fica depois de uma demolição. Para mim, tem que ver com o nada, com o vazio, elas ficam ali como que a criar uma história com esse nada, quase só com esse tijolo”, conclui.

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