Nos velhos tempos do machismo a questão podia ser colocada assim: o que é que aconteceu às mulheres quando lhes deram autorização para sair da cozinha? Algumas descobriram a porta de saída de casa e fugiram de maridos violentos; mais recentemente, uma geração de compositoras de indie-rock parece ter encontrado a sala do piano ou da guitarra, o que nos tem valido anos de extraordinária música no feminino, de Angel Olsen a Julia Jacklin, passando por Sharon van Etten.

Antes de me cancelarem, permitam-me que peça perdão pelo início do parágrafo anterior – tratou-se apenas de usar termos em desuso para expressar um fenómeno curioso: à medida que o indie-rock, que sempre foi coisa de rapazes, foi perdendo o interesse e as guitarras no masculino se tornaram aborrecidas, as mulheres aproveitaram esse vazio e tomaram o género de (as)salto, criando as melhores malhas (“Pristine”, de Snail Mail, “Pressure to party”, de Julian Jacklin) e os discos mais imaginativos (Titanic Rising, de Weyes Blood, All Mirrors, de Angel Olsen).

Faz sentido: no mundo pós-MeToo as mulheres reclamam cada vez mais os mesmos direitos dos rapazes – liderar uma banda, fazer barulho enquanto se expressa a dor ou o espanto perante o mundo, dizer coisas escandalosas. É nesta última categoria que Sarah Mary Chadwick à primeira vista se encaixa: ouvir as suas canções – em particular no seu mais recente disco, Me and Ennui Are Friends, Baby – é como entrar na sala do piano e deparar com um livro de pautas e o diário dela, que lemos à socapa, sentindo por vezes vergonha alheia, outras rindo, numa sucessão de confissões, rabugices e one-liners que nos leva a sentir uma curiosidade obscena por aquela pessoa que não sabemos quem é. Ou, dependendo da canção, a ter medo.

[a canção que dá título ao novo disco de Sarah Mary Chadwick, “Me and Ennui Are Friends, Baby”:]

Uma amostra dos sentimentos aterradores que podem assoberbar-nos ao ouvir Sarah Mary encontra-se na faixa-título, a confissão de uma tentativa de suicídio real (em geral, a escrita de Sarah Mary é auto-biográfica). Ao som de esparsos acordes de piano, Sarah oscila entre cantar e falar; Sarah canta:

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“Tried to end it all, I’d not tried lately
August 11 2019

And I didn’t call my mum ‘cause I hate that bitch
(…)
On the way to stay alive
I asked this guy his job, he said ‘a paramedic’
(…)
And maybe I should chill out on blaming my parents
Forgiveable at 25, it’s not cute at 37

But maybe I’ll just pour my soul into another few songs
The only time that I feel real

The only time I don’t feel wrong”

A tentativa de suicídio, que aparentemente não foi a primeira, foi espoletada por uma separação amorosa, outro assunto recorrente na escrita descarnada de Sarah Mary, que seria deprimente não fora o humor que ela conjura a partir da miséria que relata. Na ótima “At Your Leisure”, que vive de um jogo de graves com a melodia nos médios, seguimos a relação dela com um homem casado; o talento para criar one-liners é descaradamente da ordem do brilhante:

“You are a holiday
I am a water slide

I’ll never wash your clothes
you’ll never be my guy”

Não devemos confundir o tom confessional, que percorre todas as canções de Me and Ennui Are Friends, Baby com uma simples purga da toxicidade interior, com um fluxo de consciência que não pondera no peso das palavras: Sarah Mary é o mais equivalente que existe de David Berman, alguém capaz de enunciar a mais tenebrosa metereologia emocional recorrendo às mais inesperadas imagens.

Em “That feeling like”, quase uma lullaby ao piano, depois de enumerar uma série de sensações desconfortáveis, Sarah Mary manda tudo às malvas e, dirigindo-se a um qualquer “tu” não presente, diz, sem pudor:

“Let’s fuck, I said,
let’s fuck my friend,
let’s fuck instead
let’s fuck, I’m scared”

E em “Always feeling”, um tema lento e fúnebre surge uma confissão tão despudorada quanto caricata e pungente acerca do tipo de homens que por norma a atraem:

“I’m a sucker for anyone who is distant and aloof
you’ll never love me but I’ll chase it till I die”

Logo a seguir, “Every loser needs a mother” (ainda ao piano mas ligeiramente mais agitada) mantém o registo de análise das preferências amorosas e cada palavrinha é como um alfinete a ser enfiado numa boneca de vudu com a cara da própria Sarah:

“You’re nothing you’re no one to me
Don’t call me with problems
‘Cause I’ll help and hate myself
(…)
But every loser needs a mother
Every drunk I’ll make my lover
You’re not special you’re another
Way I give life to my father”.

Não estávamos, até há pouco tempo, habituados a ouvir mulheres falar assim. Mas entre as redes sociais e o MeToo algo mudou: raparigas que antes guardavam para si os seus sonhos, os seus traumas, as suas ambições, descobriram que havia quem as quisesse ouvir e ver. Sarah Mary, uma neozelandesa com morada em Melbourne, na Austrália, que cresceu a aprender piano, com o pai ausente e a mãe a dedicar mais tempo à garrafa que a ela, vai no sétimo disco – mas só nos últimos três descobriu o tom que lhe cai como um close-up de Antonioni no rosto de Monica Vitti: a confissão pejada de auto-irrisão.

Percorrendo o instagram dela deparamos com festas em que ela acaba nua, isto quando não posa em lingerie. Sarah tem uma obsessão por lingerie, botas altas, perfumes, que herdou de uma tia que era vendedora de cosmésticos. A chegada da tia era sempre um momento de felicidade numa casa por norma infeliz e, a acreditar em Sarah Mary, profundamente disfuncional.

Após a sua tentativa de suicídio Sarah começou a fazer psicoterapia, chegando às cinco sessões semanais – é possível que esse exercício lhe tenha permitido um acesso a uma interioridade e a um passado que até então permaneciam um mistério. A psicoterapia deu-lhe, certamente, as ferramentas necessárias para verbalizar as suas dores de uma forma não piegas nem sentimental, o que apenas torna ainda mais pungente e mais pesada cada uma das suas confissões.

Há boas notícias: Sarah está noiva, diz sentir-se equilibrada e os últimos três discos, em particular Me and Ennui Are Friends, Baby têm chegado a cada vez mais pessoas, o que não deixa de ser um paradoxo: por norma os autores tentam narrar histórias o mais universais possíveis, de modo a chegar ao maior número de pessoas; Sarah Mary faz o oposto: é tão específica e detalhada que a sensação que as suas canções criam é a de que lhe aconteceram especificamente a ela e nem era suposto estarmos a ouvir isto. Mas os temas que escolhe (famílias disfuncionais, sentimento de pouca valia pessoal, constante envolvimento amoroso com pessoas que nos vão magoar) são universais; e o detalhe só torna as histórias mais pungentes. É oportunidade para dizer que no caso de Sarah quanto mais pessoal mais universal.

Diz-se que Cristo morreu pelos vossos pecados (vossos, que eu cá não tive nada a ver com isso nem nunca o vi mais gordo); disso nada sei, mas sei que os cantores-compositores sofrem para nosso prazer e que me confunde um pouco como podemos encontrar alegria na miséria. Talvez porque uma canção já não é miséria em estado puro, é miséria decantada, pipetada, quimicamente alterada pelo talento de quem a usa como matéria-prima.

A miséria de Sarah Mary Chadwick é o nosso prazer. Um prazer dorido, porque a empatia leva-nos a ficar verdadeiramente preocupados com ela, mas ainda assim um prazer (melódico e literário). Mas talvez a miséria não seja dela – talvez seja a nossa, da humanidade toda a quem já ouvimos histórias semelhantes, arrumada em melodias e narrativas irresistíveis.

Traz-nos mais miséria, Sarah, a gente está aqui para rir e chorar contigo. Mas mantém-te viva, rapariga.