De que forma se pode olhar a escrita de Vergílio Ferreira? Abrindo-a à possibilidade de a percorrer pelo risco, pela surpresa, pelo acaso. Abra-se o livro Pensar, como quem mergulha no caos organizado da reflexão filosófica do seu autor, e surge uma inesperada luminosidade no pensamento 420. Diz o seguinte:

“Esquece a amargura, os atropelos, o cansaço. E as maledicências, as traições, os rancores. Esquece o trabalho que te traz em alvoroço e os fracassos de uma vida inteira e os projectos falhados para antes de começarem a ser projectos. E as invejas, as calúnias, as insídias como dentes por entre o sorriso. Esquece. E sê contente. E respira”.

Uma negação do pessimismo, plasmado no rosto de quem nunca teve com a vida uma relação leve e desembaraçada. Mesmo quando é luminoso, como acontece com a passagem acima transcrita, é impossível esquecer as olheiras, o ar de quem traz consigo um punhado de angústias, sem nunca as conseguir aclarar. Quem muito pensou e ruminou não podia ser de outra forma. Mas. Há muitos “mas” neste autor de desenho complexo, a merecer leituras e releituras.

Quem escreveu livros como Manhã Submersa, Aparição, Alegria Breve, Para Sempre e Até ao Fim é um resistente. Alguém inquietado e que inquieta. Escreveu: “Um livro não pode simplesmente distrair-nos. É necessário um ‘saldo’ final que nos comprometa com a vida. Que nos perturbe”. Quem se joga pela literatura, privilegiando o sentimento sobre a razão, acredita. “Escrever é orar sem um deus para a oração”. Apesar das desistência de todas as transcendências, há nele um sentido do mistério. Do oculto, revelado pela arte. “Toda a palavra é misteriosa”.

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As polémicas de um escritor em contracorrente

Da vida, consciente de que lhe falta sentido, é preciso tirar proveito. De modo calmo, sem gritos e outras desmesuras. Com a serena lucidez de quem sabe que nada se está, no fundo, a inventar – porque há um alongado antes, feito de muitas criações e recriações. De modo recatado, evitando exposições, mas, no caso de se ser escritor, sabendo da sua inevitabilidade. Anotou: a partir do momento em que se é um autor bastante lido, a obra literária exige um compromisso comercial. A exposição, sabia-o, é penosa mas inevitável.

Nascido em Melo (Gouveia) a 28 de Janeiro de 1916, morreu, na cidade de Lisboa, no dia 1 de Março de 1996. Foi nos anos 40 que deu início ao seu percurso literário no preocupado chão do neorealismo. Mais tarde passou para os terrenos do existencialismo – próprio, com sentidos muitos, para além da cópia, mesmo que assentando em importantes leituras de autores como Sartre e Camus. Estudou no seminário e licenciou-se depois em Filologia Clássica na Universidade de Coimbra. A formação académica resultou no ofício de professor, no qual nunca se realizou. Assumiu: “Não, não gosto mesmo de dar aulas. Nunca gostei. Um antigo aluno (já o contei?) disse-me um dia que eu imitava muito bem o gostar”. Há, já o referiram algumas figuras, quem se sinta marcado pelas suas aulas.

Experimentou o ensaio, como em Invocação ao Meu Corpo, escrita de “torneira aberta”, difícil como uma viagem sem bússola. Descreveu o projecto desse livro nestes termos: “Creio que o tema é só este: a morte pode vir quando quiser. Gastei a possibilidade de discutir a (com a) vida. Ela é já dos outros. Passei. Sei que a alegria existe e digo-o. Mas já não é para mim”. Não há uma divina transcendência mas é possível habitar a felicidade, depois passada, sem dramatismos, a outros.

O autor na entrega do prémio P.E.N. Clube Português de Narrativa, por "Em Nome da Terra", em 1991. No ano seguinte foi distinguido com o prémio Camões. Em 1997, um ano após a morte do escritor, a Universidade de Évora instituiu o prémio Vergílio Ferreira

ACACIO FRANCO/LUSA

Há quem prefira o Vergílio Ferreira ficcionista de vocação lírica, complementada por digressões filosóficas, e quem prefira o diarista sempre com a crítica na ponta da caneta. Quando se fala em diários em Portugal, os volumes de Conta-Corrente vêm logo à conversa. O primeiro começa assim:

“Fiz cinquenta e três anos há dias. Como é óbvio, não acredito. Mas enfim, é a opinião do Registo Civil. Acabou-se, fiz cinquenta e três”.

Logo faz uma diferença entre a ficção e a escrita sobre o real: “Um romance é um biombo: a gente despe-se por detrás. Isto não”. A seguir vem uma nota sobre a circunstância de se ver como “intragável” e limitado. Mas escreve porque sim, porque precisa dessa pausa nos romances, porque há quem tenha curiosidade.

Conta Corrente tem um pouco de tudo: poemas, opiniões sobre encontros com autores como Eduardo Lourenço, Almeida Faria, António Ramos Rosa, reflexões sobre literatura (a sua, a dos outros) e cinema, desabafos sobre o facto de se sentir sempre desenquadrado, nas relações sociais, na forma de posicionamento político — foi progressista mas manteve-se sempre questionador das “novas esquerdas”, interessadas no carreirismo e desculpadas pelas recorrentes citações de Marx.

E ressentimentos e desabafos rezingões, a ocasional possibilidade de liberdade (pelas artes), notas sobre problemas de saúde, sobre os avanços e estacionamentos das ficções em curso, a vida doméstica, as férias em Fontanelas, a consciência progressiva da finitude. Uma finitude que dita uma sentença: a vida não tem um sentido. Consciência que não resulta em desistência de viver. É essa falta de sentido, defendeu, pensou, teorizou, que a existência se torna “fascinante no seu milagre absurdo de ser”.

Nuno Costa Santos é escritor