“Para Além da Lua”, um dos cinco candidatos ao Óscar de Melhor Longa-Metragem Animada e disponível na Netflix, dá ares de filme da Disney, soa a filme da Disney e sabe a filme da Disney, mas não é um filme da Disney. Isto explica-se porque o realizador, Glen Keane, trabalhou durante várias décadas na Disney e foi um dos seus principais animadores, responsável, entre outras, pelas personagens de Ariel em “A Pequena Sereia”, de Aladino em “Aladdin” e do Monstro em “A Bela e o Monstro”, e supervisor da animação e das personagens de “Oliver e seus Companheiros”, “Tarzan” ou “Entrelaçados”.

[Veja o “trailer” de “Para Além da Lua”:]

Após sair da Disney, Keane criou uma produtora de animação e em 2017 ganhou o Óscar de Melhor Curta-Metragem Animada com “Dear Basketball”. Quase aos 70 anos, estreia-se a realizar uma longa-metragem animada musical com “Para Além da Lua”, uma co-produção sino-americana com a qual a Netflix quer reforçar a sua aposta neste género, e que é claramente apontada ao mercado chinês: uma história passada na China, no seio de uma família chinesa, escorada na mitologia local e utilizando, para as vozes das personagens, atores e atrizes de ascendência chinesa. Isto embora a matriz narrativa da fita, as emoções que contempla e a lição de vida que transmite sejam, também claramente, de um simplismo muito americano, e Disney em menor.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

[Veja uma entrevista com o realizador Glen Keane:]

A heroína de “Para Além da Lua” é Fei Fei, uma menina de 13 anos que adora ciência e tecnologia. A mãe morreu era ela pequena, e quando o pai fica comprometido com outra mulher, Fei Fei, magoada, decide provar-lhe, e ao resto da família, que a lenda que a mãe lhe contava sobre a deusa Chang’e, que ascendeu à lua depois de tomar uma poção que a tornou imortal mas fez perder o seu amor humano, Houiy, e lá espera por ele há séculos, é real. Fei Fei constrói então um foguete para ir à lua, acompanhada de Bungee, o coelho que a mãe lhe deu antes de morrer, levando como clandestino o irritante Chin, filho da namorada do pai.

[Veja entrevistas com o elenco:]

Audrey Wells, a argumentista de “Para Além da Lua”, morreu de cancro em 2018, antes da produção ter sido concluída, e o filme é também uma mensagem  de amor e ânimo que ela deixou para a própria família. Esta nota pessoal passará despercebida à esmagadora maioria dos espectadores, muito em especial aos mais pequenos, que são o alvo preferencial desta fita, tão atarefada formalmente como transparente e pouco exigente na história, e onde Glen Keane recorre à sua herança da Disney para celebrar a cultura chinesa, mas também pisca o olho à “anime” infantil nipónica e acena ao universo de Miyazaki e à cultura K-pop (ver o concerto de Chang’e na cidade lunar), para seduzir outras plateias asiáticas que não apenas as chinesas.

[Veja uma cena do filme:]

Isto deixa-nos com um filme de identidade híbrida e visualidade bagunçada, manufaturado no Ocidente com elementos, histórias, valores, costumes e figuras chinesas, e estética e citações quer da arte tradicional da China, quer da cultura pop asiática, mas escorado no estilo e nos estereótipos da animação, da temática e do sentimentalismo da Disney que Glen Keane tão bem e lealmente serviu durante muitos anos (as canções, a propósito, não duram nem um minuto no ouvido). Não é por acaso que um dos poucos bons momentos desta produção insipidamente digital é a sequência em animação clássica, desenhada pela mão do próprio Keane, em que se conta a história triste da deusa Chang’e de Houyi a partir de um lenço de seda estampado.

Se o resto de “Para Além da Lua” imitasse esta sequência, o filme seria mais bonito, mais coeso e mais genuíno, e menos desarrumado, berrante e artificial. O que faz dele o mais mal colocado dos cinco candidatos deste ano ao Óscar de Melhor Longa-Metragem Animada.

“Para Além da Lua” está disponível na Netflix