No espaço de comentário na SIC Notícias, na sexta-feira, Francisco Louçã, economista e antigo coordenador do Bloco de Esquerda, recuperou um discurso de novembro de 2019, em que a deputada municipal e vice-presidente do Partido Popular Monárquico (PPM), Aline Beuvink, alude a um “período negro da História Universal” a partir do qual “nasce o mito com fundo de verdade de que os comunistas comiam crianças“. “Sim, houve canibalismo, sim aos milhares“, afirma a deputada. Francisco Louçã ironizou que “alguns setores da direita acreditam mesmo nas suas lendas mais sanguinolentas” — como a de que “os comunistas comem criancinhas”. Ao Observador, Aline Beuvink acusa Louçã de ter sido “intelectualmente desonesto” e de ter feito “cortes propositados” no vídeo.
Em declarações ao Observador, a deputada luso-ucraniana, formada em História e professora na Universidade Autónoma, recusa ter dito que “os comunistas comem crianças”. Afirma que se referia a um episódio específico da História da Ucrânia soviética — o Holodomor (essa referência não aparece no vídeo transmitido), também conhecido como a Grande Fome — em que “houve canibalismo”, vinca. Aline Beuvink diz que se baseia em “livros, documentários, fotografias e vários testemunhos“, segundo os quais “houve quem tivesse de comer os seus filhos, de matar os seus próprios filhos para não passarem fome“.
“O Dr. Francisco Louçã, além de ser intelectualmente desonesto, fez cortes propositados, de maneira a tentar ridicularizar não a mim, mas uma nação que sofreu historicamente algo horroroso equivalente ao Holocausto”, critica.
Na base desta troca de argumentos está um discurso de novembro de 2019. Na altura, o PSD tinha proposto à assembleia-municipal de Lisboa um voto de “saudação à deliberação histórica do Parlamento Europeu”, que colocava o comunismo e o nazismo em pé de igualdade, ao aprovar uma resolução de condenação a ambos os regimes por terem cometido “genocídios e deportações” e terem sido “a causa da perda de vidas humanas e liberdade em uma escala até agora nunca vista na história da Humanidade”. A saudação acabou rejeitada com os votos contra do PS, PCP, BE, PEV e de sete deputados independentes, a abstenção do PAN, e os votos favoráveis do PSD, CDS-PP, MPT, de um deputado independente e do PPM — partido do qual Aline Beuvink é deputada e vice-presidente.
Parlamento Europeu aprovou resolução que coloca nazismo e comunismo em pé de igualdade
Foi durante essa sessão camarária que a também historiadora falou do Holodomor. Nas partes do discurso transmitidas por Francisco Louçã, Aline Beuvink aparece a dizer que “é por causa deste período negro da história universal que nasce o mito com fundo de verdade que os comunistas comiam crianças. Sim, houve canibalismo, sim aos milhares. O desespero da fome levou à loucura e se virem os documentos da época, que penso que os senhores deputados não sabem ler russo, percebe-se que essa fome foi provocada de forma intencional”, afiança.
A deputada conclui depois que o “canibalismo” foi o ponto “a que as políticas comunistas levaram um povo” e compara o Holodomor com o Holocausto. “O episódio do Holodomor é tão hediondo como o Holocausto. Ou os senhores deputados não querem reconhecer a História ou para vós há vítimas com pedigree mais vítimas do que outras”, apontou.
No comentário da SIC Notícias, durante o segmento “Momento Zen”, Francisco Louçã ironizou: “Alguns setores da direita acreditam mesmo nas suas lendas mais sanguinolentas. Uma delas é que os comunistas comem criancinhas. Na assembleia-municipal de Lisboa, não há muito tempo, uma deputada explicou que isso era rigorosamente verdade e que tinha provas: os comunistas comem crianças e não são poucas“.
O comentário de Louçã já está a suscitar debate nas redes sociais, levando o antigo coordenador do Bloco a esclarecer, no Facebook, que “o que que aqui está em causa não é o terror de Estaline sobre o seu povo, é mesmo que vossas excelências afirmam que os comunistas comem crianças. E repetem. Por isso, continuem a repetir, o ridículo veste-vos bem”.
https://www.facebook.com/watch/?v=268487991497775
No vídeo completo, disponível no YouTube, Aline Beuvink começa por acusar os deputados que votaram contra o voto de saudação proposto pelo PSD de “branquear a História e os erros do comunismo”. “Podia falar em vários episódios e atrocidades em várias partes do globo, mas decidi falar de um episódio histórico, que é dramático, hediondo” — o Holodomor, “um projeto maquiavélico do comité central comunista com o fim de dominar os ucranianos que se recusavam a aceder aos Kolkhoz e aos Gulag, recusavam-se a ser soviéticos e fizeram frente ao partido comunista que tentava cortar-lhes as raízes, a sua identidade como um todo e a sua própria terra”.
Aline Beuvink diz que se baseou em “livros sobre o Holodomor, documentários, fotografias das pessoas mortas no meio da rua e vários testemunhos da época”. E num relato da avó materna, que, segundo a deputada, conta ter conhecido outra criança “faminta, dizendo que fugia da própria família porque percebeu conforme desaparecia cada um dos irmãos mais novos que havia comida na mesa. Para não ser a próxima, fugiu”.
Casos de canibalismo durante épocas de fome não são exclusivas do comunismo, diz José Milhazes
O Holodomor — que significa “matar de fome” — foi um período do início dos anos 30 do século XX da Ucrânia soviética marcado pela fome e pela morte de entre 7 a 10 milhões de pessoas (numa estimativa que consta numa declaração conjunta das Nações Unidas). Ao Observador, José Milhazes, jornalista e historiador, que viveu quase 40 anos na Rússia, explica que a fome foi provocada intencionalmente pelo regime soviético de Estaline “para obrigar os camponeses a irem para as unidades coletivas de produção, os Kolkhoz e Sovkhoz, e para arranjar trigo para exportar e, assim, conseguir moeda estrangeira para comprar tecnologia para a industrialização do país”.
José Milhazes afirma que as declarações de Aline Beuvink sobre a existência de relatos de canibalismo têm uma “base de verdade” e que o Holodomor foi um dos períodos das grandes fomes que suscitou a “lenda” de que os comunistas comiam crianças. “Há relatos de pessoas que viveram e deixaram escrito esses episódios, que viram cenas de canibalismo, muitas vezes em relação à própria família”, refere.
O historiador acrescenta, porém, que esses relatos de canibalismo não são exclusivos do regime soviético. O cerco a Leninegrado, entre 1941 e 1944, pelas tropas nazis, é disso exemplo. “Quando os nazis cercaram Leninegrado, durante a Segunda Guerra Mundial, faltaram alimentos, a população comia tudo: ratos, ratazanas. E também há casos de canibalismo, inclusive que era vendida carne humana nos mercados, já cozinhada, para matar a fome“.
José Milhazes recusa, no entanto, a comparação com o Holocausto feita por Aline Beuvink. “É um problema muito delicado. Se considerarmos o Holocausto como genocídio em relação a um povo, o Holodomor não foi só contra os ucranianos, embora os ucranianos tenham morrido aos milhares. Morreram também muitos russos, judeus que viviam na Ucrânia e nas partes da Rússia atingida, no Cazaquistão”.