As perguntas naturais de um adepto de futebol que esta segunda-feira leu que a Superliga Europeia existe e está confirmada são muito simples: como?, quem? e o que é que acontece à Liga dos Campeões?. Depois, e respondidas essas três questões – ainda que a última tenha um infinito de ressalvas –, surgem as dúvidas adicionais. De onde é que apareceu esta ideia (o quem ninguém tem dúvidas: Florentino Pérez)? Isto já aconteceu alguma vez em algum desporto? Existe um modelo semelhante em qualquer outro lado?
O grande paralelismo que existem tem já 20 anos e teve como epicentro o basquetebol europeu. Na altura, e tal como está a acontecer agora com o futebol, rebentou uma guerra civil no coração da modalidade – e venceram os dissidentes. Em 2000, os clubes das ligas mais competitivas da Europa (logo, aqueles que também tinham maiores receitas) decidiram passar por cima da FIBA Europa, a organização que regula todo o basquetebol do continente, e criaram duas novas competições no calendário, a Euroleague e a Eurocup. Os clubes separatistas, por assim dizer, fundaram ainda a União das Ligas Europeias (ULEB) e pretendiam, com a nova Euroleague, acabar de vez com a velha Taça da Europa.
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Na altura, a FIBA resistiu, mostrou-se contra e teve uma postura semelhante à da UEFA. Borislav Stankovic, que era o secretário-geral da organização, ameaçou com sanções, multas e castigos todos os participantes das novas competições. “Se os clubes atuarem à margem da FIBA e das federações nacionais, os seus jogadores vão ficar de fora das competições internacionais”, atirou o responsável sérvio, numa promessa que acabou por nunca se cumprir. Em 2000, disputaram-se ambas as competições, com o Maccabi Telavive a conquistar a velha Taça da Europa e o antigo Kinder Bolonia (atual Virtus Segafredo Bolonha) a vencer a edição de estreia da nova Euroleague. A FIBA resistiu, mostrou-se contra mas, no final, acabou por homologar as provas e em 2004, escassos quatro anos depois de ter rebentado a “bomba”, reconheceu a ULEB como a entidade organizadora da Euroleague e a Taça da Europa deixou de existir, com os restantes clubes a aceitarem as novas competições.
No entanto, a luta nunca chegou realmente ao fim e, nos últimos anos, a FIBA tentou voltar a chamar à sua tutela as competições de forma diferente. Sem sucesso: a hipótese de criar uma Champions League nunca resultou, a ameaça de afastar as federações que estivessem qualificadas para o Campeonato da Europa de 2017 também não, as disputas nos tribunais ainda se prolongam. A própria Euroleague, que sempre teve uma organização própria, mudou também em relação ao que começou por ser e ao que é hoje: em 2000/01 tinham acesso à competição os quatro primeiros de Grécia, Espanha e Itália, os dois primeiros da Croácia, os campeões de Bélgica, Alemanha, Grã-Bretanha, Portugal, Eslovénia, Suíça, Sérvia e dois wild cards, organizados em quatro grupos de quatro; em 2020/21 existe uma fase regular com 18 equipas que jogam em casa e fora num total de 34 encontros, antes da fase final onde estão 11 conjuntos que têm licença a longo termo (Barcelona, Real Madrid, Baskonia, Panathinaikos, Olympiacos, Maccabi Telavive, Anadolu Efes, Fenerbahçe, Olimpia Milão, Zalgiris e CSKA Moscovo) e mais sete com licença anual que resulta do que fazem nas provas nacionais (Bayern, Alba Berlim, Khimki, Zenit, Valencia, ASVEL e Estrela Vermelha).
Ainda assim, e apesar do exemplo do basquetebol europeu, a grande inspiração da nova Superliga Europeia é de forma clara o basquetebol norte-americano – facto a que não é alheio o pormaior de três dos 12 clubes fundadores da competição serem detidos por entidades provenientes dos Estados Unidos, como o Arsenal, o Manchester United e o Liverpool. A nova competição, idealizada por Florentino Pérez, olha para a NBA como um verdadeiro modelo, uma liga independente, muito poderosa economicamente e com capacidade para aliar negócio, espetáculo e competitividade. Clubes como Real Madrid, Barcelona, Manchester City ou Juventus reconhecem-se cada vez mais no modus operandi dos Lakers ou dos Celtics ao invés do modelo de gestão tradicional do futebol europeu. Desde o capítulo financeiro ao próprio tratamento da imagem dos atletas – que na Europa têm ainda uma imagem de figuras algo inatingíveis e nos Estados Unidos são cada vez mais ídolos acessíveis, numa reformulação da forma como se relacionam com a comunicação social, com os adeptos e até com a opinião pública, através de documentários, séries ou reportagens de bastidores. Curiosidade: Florentino Pérez já assumiu que gostaria de, a médio prazo, colocar o seu Real Madrid na maior liga profissional de basquetebol…
A NBA nasceu em 1946 enquanto entidade privada que não depende da Federação de Basquetebol dos Estados Unidos e conta com 29 equipas norte-americanas e uma canadiana, os Toronto Raptors (foram duas mas os Grizzlies passaram de Vancouver para Memphis). O modelo desportivo nada tem que ver com o europeu: não existem janelas de transferências, logo à partida, com os jogadores a chegarem aos clubes através do draft, o sistema implementado para controlar o acesso dos atletas à liga. O draft, aliado ao limite salarial que também já começou a ser utilizado pela UEFA, permite à NBA estimular a concorrência entre franquias e dar mais possibilidades e oportunidades a cada uma das equipas. Os jogadores são transferidos através de trocas que envolvem outros atletas ou escolhas no draft seguinte, o que significa que, muitas vezes, as primeiras equipas a escolher estão longe de ser as melhores equipas mas ficam com aqueles que, em teoria, são os melhores jogadores. Outro dado: todos os valores salariais pagos a cada atleta são públicos.
A Superliga Europeia cruza-se com a NBA na perspetiva de não existirem despromoções ou promoções – uma característica que tem sido das mais criticadas da nova competição –, ainda que exista um detalhe que distingue as duas provas: se a Superliga Europeia é um projeto adicional aos habituais campeonatos domésticos de cada país, a NBA é a única competição que as equipas de basquetebol norte-americanas disputam ao longo da temporada. Para os donos dos clubes que vão integrar a Superliga, e onde se incluem então os norte-americanos E. Stanley Kroenke (Arsenal), Fenway Sports Group (Liverpool) e a família Glazer (Manchester United), a criação de uma liga fechada e restrita significa abrir a porta a negócios com mercados televisivos lucrativos no mundo inteiro, incluindo em cidades dos Estados Unidos. A ideia, de forma clara, é ainda adotar as políticas de utilização e tratamento de dados que são uma realidade na NBA e também na MLB, a liga de basebol norte-americana.
“Não seria nada surpreendente ver a Superliga Europeia a tentar colocar uma equipa ou duas de expansão nos Estados Unidos nos próximos anos. Tal como a NFL e a NBA tentam há muito expandir-se para mercados para lá dos Estados Unidos, a possibilidade de vender uma equipa de expansão de futebol de uma liga europeia de topo para um mercado como o de Nova Iorque ou Los Angeles seria unicamente desejável. Não só tendo em conta a receita que essa expansão traria mas também o acesso melhorado aos mercados televisivos norte-americanos”, explica esta terça-feira a Forbes, que analisou todo o assunto do ponto de vista dos Estados Unidos e acaba por comparar este momento com a tentativa das melhores equipas de futebol americano universitário, no início dos anos 80, de escapar a algumas limitações de transmissão impostas pela National Collegiate Athletic Association. Os clubes fundaram a College Football Conference, que acabou por dissipar-se algum tempo depois, mas conseguiram garantir algumas liberdades financeiras que não tinham anteriormente.