E, de um momento para o outro, o futebol europeu assistiu a dois dias loucos e sem precedentes. A Superliga Europeia começou, complicou-se e acabou no espaço de pouco mais de 48 horas e ainda teve um terceiro dia extra com mais desistências, com a capitulação de Andrea Agnelli e o isolamento total de Real Madrid e Barcelona.
Ainda assim, nada do que se passou irá ser enterrado sem consequências. A ideia de que o futebol dificilmente irá continuar tal e qual como está é cada vez mais uma realidade e muito disso parte de tudo aquilo que nós, enquanto elementos desta pirâmide que todos os clubes que recuaram mencionaram, aprendemos. Aprendemos que a UEFA tem de se proteger melhor, aprendemos que o movimento associativo existe e tem poder e aprendemos que os tetos salariais podem aparecer a curto prazo – e todas essas lições serão a base daquilo que o futebol quiser ser no futuro.
A UEFA tem o monopólio – mas tem de se proteger
É inevitável afirmar que a UEFA, depois de dois dias aterradores, confirmou que tem nas mãos o monopólio do futebol europeu. Ao contrário do que aconteceu no basquetebol, em que um grupo de clubes conseguiu, em 2000, vencer a FIBA e estabelecer a Euroleague e a Eurocup, extinguindo a velha Taça da Europa, a UEFA conseguiu resguardar a Liga dos Campeões, derrotou os dissidentes e saiu reforçada com o respaldo de jogadores, treinadores e adeptos.
Ainda assim, é também necessário pensar em tudo o que levou à criação da Superliga Europeia: desde a quase inevitabilidade de existência de uma elite; a necessidade de uma reforma profunda da Liga dos Campeões; a obrigatoriedade de adaptação aos novos tempos, no que aos direitos televisivos diz respeito; e a maior preocupação na hora de escolher os representantes dos clubes junto das instâncias continentais. Todos estes pontos vão desaguar em lições individuais mas a grande consequência que a UEFA pode levar destes últimos dias é a certeza de que tem de se blindar, proteger dos interesses que povoaram a FIFA e manter-se independente e isenta junto dos grandes poderes.
A Liga dos Campeões tem de gerar mais dinheiro
Tornou-se um hábito referir que a Liga dos Campeões é a liga milionária. E não é uma designação descabida: no modelo atual da competição, os clubes recebem 2,7 milhões de euros por cada vitória e 900 mil por cada empate. As equipas que chegam aos oitavos de final têm direito a 9,5 milhões, as que chegam aos quartos de final recebem 10,5 milhões e o valor sobe para 12 milhões no caso das meias-finais e 15 milhões no caso da final. A todas estas quantias, o clube vencedor pode ainda juntar mais quatro milhões, referentes à conquista do troféu, e garante ainda a qualificação automática para a Supertaça Europeia, prova que é decidida entre os vencedores da Liga dos Campeões e da Liga Europa. Para termos uma ideia, o FC Porto – que foi eliminado nos quartos de final – arrecadou esta temporada cerca de 74 milhões de euros só em prémios diretos, faltando ainda os valores relacionados com o market pool.
Ainda assim, e como ficou notório nas últimas horas, os valores praticados na Liga dos Campeões já não são suficientes para os clubes de topo. Já não eram, nos últimos anos, e tornaram-se ainda menos com as perdas associadas à pandemia. No comunicado que tornou oficial a Superliga Europeia, e onde ainda não eram revelados oficialmente os prémios associados à conquista do troféu ou à passagem a cada uma das fases, ficou desde logo claro que uma das diferenças entre a Liga dos Campeões e a nova competição seria precisamente o retorno que cada equipa teria.
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A nova competição contava com um capital inicial de 3,525 milhões de euros, com origem em diversos investidores, que seria inicialmente repartido pelos 15 clubes fundadores de acordo com um esquema definido previamente: seis clubes receberiam 350 milhões; quatro receberiam 225 milhões, dois receberiam 112,5 milhões, e três receberiam 100 milhões. A estes valores iniciais, destinados a arrancar com a competição, teriam de juntar-se os direitos televisivos, estimados em 4 mil milhões de euros tendo em conta o estatuto das equipas participantes. Destes, 65% seriam distribuídos entre os clubes fundadores; 20% seriam distribuídos consoante critérios baseados nos resultados desportivos durante a Superliga; e os restantes 15% seriam aplicados com base em critérios comerciais.
Feitas as contas, isto significa que qualquer clube que jogasse na Superliga receberia um mínimo de 60 milhões de euros só por participar. Já o vencedor levaria para casa mais de 250 milhões de euros, muito acima dos valores a que o vencedor da Liga dos Campeões pode aspirar se conseguir ganhar após um percurso de vitórias na competição. Uma linha de pensamento que foi depois sublinhada por Florentino Pérez, que garantiu que a Superliga Europeia servia para “salvar” o futebol depois do rombo provocado pela pandemia.
Assim, e apesar de os clubes que mais se queixam da escassez de receitas serem também os clubes com mais gastos e mais dívidas, fica claro que a UEFA terá de abrir os cordões à bolsa na Liga dos Campeões para garantir que a próxima Superliga – ou seja, o próximo projeto semelhante – não tem um destino diferente. Desta feita, e muito graças aos adeptos, aos jogadores e aos treinadores, os planos não tiveram pernas para andar e acabaram por envergonhar os próprios cérebros da nova competição. Mas nada garante que para a próxima será exatamente assim.
Os direitos audiovisuais podem em breve saltar para uma plataforma menos convencional
Esta era uma das linhas vermelhas da Superliga Europeia e será, com toda a certeza, um dos temas do futuro. Anas Laghari, o banqueiro que é a peça-chave para entender como a preparação de todo o projeto ganhou corpo, teve luz verde para garantir não só o financiamento junto do JP Morgan como também para vender os direitos audiovisuais da competição, numa manobra que seria essencial para amortizar o empréstimo contraído – e onde se poderiam incluir gigantes como a Amazon, o Facebook, a Disney ou a Sky. Este argumento, onde também se integrava a procura por um main sponsor para a prova e a possibilidade de, numa segunda fase, abrir o capital social da sociedade criada pelos clubes fundadores, foi também utilizado por Ed Woodward, vice-presidente do Manchester United, para convencer as restantes equipas inglesas.
A ideia, de forma muito simples, era vender os direitos de transmissão da Superliga Europeia a uma dessas plataformas – ainda pouco convencionais na indústria do futebol – e romper com o atual panorama desportivo europeu. Se a possibilidade de um salto para um serviço de streaming acarretava o risco de alienar o público mais velho, ainda habituado a assistir aos jogos de futebol através da televisão, nos canais de sempre, garantia o interesse dos adeptos mais jovens. Adeptos esses que, segundo Florentino Pérez e numa faixa etária dos 16 aos 24 anos, estão a perder o gosto pelo futebol.
Sem Superliga, a possibilidade de assistir a um Real Madrid-Bayern Munique numa das principais plataformas online de streaming fica, por agora, em stand by. O que não significa que a UEFA não tenha de pensar sobre o futuro dos direitos audiovisuais das competições – se é verdade que dificilmente a nova geração está a perder interesse pelo futebol, ao contrário do que diz o presidente do Real Madrid, também é verdade que o tão necessário dinheiro está cada vez mais nestas mesmas plataformas e não nos canais de televisão mainstream. E esse salto acabaria por provar que o organismo que regula o futebol europeu não está parado no tempo e vai-se adaptando à medida que o mundo avança.
Os nomes para a Associação Europeia de Clubes e para o Comité Executivo da UEFA têm de ser bem ponderados
Foi uma das consequências imediatas do anúncio da Superliga Europeia: Andrea Agnelli, que nesse momento assumiu o cargo de vice-presidente da nova competição, demitiu-se de presidente da Associação Europeia de Clubes (ECA) e do lugar que tinha no Comité Executivo da UEFA. Nasser Al-Khelaïfi, presidente do PSG, depressa foi apontado como o sucessor do italiano mas recusou, preferindo assumir uma posição não oficial mas fulcral enquanto mediador entre a UEFA e o grupo de dissidentes e manter o assento no Comité Executivo.
Ora, Agnelli era presidente da ECA desde 2012 e fazia parte do Comité Executivo da UEFA desde 2015. Ao longo desses anos, e enquanto presidente de um clube que teve a hegemonia interna e chegou de forma consistente a fases derradeiras da Liga dos Campeões, o italiano foi adquirindo influência, poder e margem de manobra para poder ser o braço de direito de Florentino Pérez enquanto era um dos amigos mais próximos de Aleksander Čeferin. Se a amizade esteve sempre debaixo de muitos rumores, porque Agnelli foi constantemente alvo de alguma desconfiança por parte dos homólogos de outros clubes e da opinião pública, o presidente da UEFA fez sempre questão de afastar as preocupações. Até ao passado domingo.
O presidente da Juventus enganou o da UEFA, mentiu-lhe na véspera de a Superliga Europeia ser oficialmente lançada e trocou os cargos que tinha no organismo europeu para assumir outro na nova competição. O mau exemplo de Agnelli deixa claro que é preciso cautela e responsabilidade na hora de escolher e eleger quem representa os clubes, de uma forma geral, junto da UEFA – ser o líder de um dos maiores conjuntos desportivos europeus, ter o controlo das competições internas e chegar frequentemente às grandes decisões da Liga dos Campeões não é suficiente. E Čeferin, pelo menos, parece ter percebido isso logo nos primeiros instantes.
“Há muitas cobras perto de nós. Fui advogado criminal durante 24 anos, mas nunca vi nada assim. Ed Woodward ligou-me quinta-feira a dizer que estava muito satisfeito com as mudanças na Liga dos Campeões, quando já tinha assinado outra coisa. O Agnelli foi provavelmente quem mais me desiludiu. Nunca conheci alguém que mentisse tanto e de forma tão persistente. O que ele fez é inacreditável. Falei com ele na tarde de sábado e ele disse: ‘São apenas rumores, não te preocupes que nada vai acontecer'”, atirou o presidente da UEFA na primeira entrevista que deu logo depois de a Superliga Europeia ter sido anunciada.
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O movimento associativo está vivo (e recomenda-se)
Uma das ideias mais repetidas por quem estava contra a Superliga Europeia foi a de que o futebol foi criado, construído e solidificado por pobres e estava agora a ser assaltado por ricos. Mas o que é certo é que, para a história, fica a resposta massiva dos adeptos a uma proposta que não os agradava – assim como ficam os comunicados de praticamente todos os clubes que abandonaram o projeto, onde, ainda que uns mais veementes do que outros, os responsáveis máximos das equipas reconheceram e agradeceram a mobilização da massa associativa.
Se as vozes de Jürgen Klopp e Pep Guardiola foram importantes, se as respostas imediatas de Bruno Fernandes e João Cancelo foram fulcrais, se a declaração de Ander Herrera foi crucial, a imagem deixada pelos grupos organizados de adeptos dos clubes associados à Superliga – com especial intensidade em Inglaterra – foi o ponto de viragem. Esta terça-feira, cerca de mil adeptos do Chelsea juntaram-se à entrada de Stamford Bridge, onde os clubes iam receber o Brighton, e exigiram a retirada do clube da nova competição para logo depois festejarem as primeiras notícias que confirmavam esse cenário. A saída de Petr Cech, que deixou as instalações para pedir calma à multidão e garantir que tudo iria ficar resolvido, foi a prova de que os clubes, ou pelo menos alguns, ainda respeitam a voz dos adeptos: até porque o antigo guarda-redes checo repetiu, de forma consecutiva, as palavras “eu sei, eu sei, eu sei”.
A carta aberta do Arsenal, que pede desculpa, assim como a declaração publicada esta quarta-feira pelo dono do Liverpool, não deixam de ressalvar esse respeito que as cúpulas dos clubes ainda têm de ter pelos que, noutros tempos, lhes enchiam as bancadas dos estádios. Se é certo e claro que o futebol é hoje em dia um jogo de interesses, povoado por cifrões e milhões, também é certo e claro que as origens desse mesmo futebol vêm ao de cima quando os valores são colocados em causa. Afinal, os ricos estavam a tentar assaltar algo que foi criado, construído e solidificado por pobres.
Entretanto, em Inglaterra, os Supporters’ Trust do Chelsea, do Arsenal e do Manchester United já emitiram comunicados oficiais com críticas aos proprietários dos clubes – que, curiosamente, são todos estrangeiros. No caso específico do Chelsea, os adeptos pedem mesmo a demissão do CEO Guy Laurence e do presidente do Conselho de Administração Bruce Buck.
Os tetos salariais da Superliga podem ser uma realidade
Outra das heranças que poderão prevalecer depois de resolvido todo este imbróglio. Naquilo que já tinha sido adiantado pela Superliga Europeia, a nova competição tinha praticamente consagrada a existência de tetos salariais para os jogadores, limites de gastos e distribuição de lucros – ainda que, neste último ponto, beneficiassem claramente os clubes mais ricos. Naquilo que era uma espécie de atualização menos justa do fair play financeiro, a Superliga pretendia garantir que os clubes só gastavam aquilo que realmente recebiam.
Ainda assim, a ideia de um teto salarial – como existe, por exemplo, na NBA ou na MLS – não é totalmente descabida. A contratação de Neymar por parte do PSG, em 2017, veio revolucionar a forma como o mercado funciona e abriu a porta a uma realidade totalmente disfuncional e irracional onde os valores praticados estão agora muito acima do aceitável. A existência de uma barreira acabaria por nivelar os gastos dos clubes com salários, para além de emagrecer uma coluna da folha orçamental, e aproximar os emblemas mais poderosos das realidades da maioria das equipas.