No mundo do futebol, há jogadores profissionais que, depois de uma carreira intensa a jogar em ligas na Europa, resolvem passar a reta final num clube milionário asiático ou norte-americano. Há muito mais dinheiro e muito menos cansaço. Mads Mikkelsen, que não é futebolista — mas não se importaria de o ser — tem 55 anos. O ar cerrado, quase cortante, de quem esconde qualquer coisa que o público nunca entende, mas quer muito saber, tem seduzido realizadores e produtores ao longo dos anos. A aptidão para dar ao lado negro da força uma certa suavidade cruel, recorrendo à gargalhada maquiavélica que nos anuncia o fim do mundo, tem-no levado a percorrer os caminhos do cinema (e da TV) quase sempre como o mau da fita; ou o quase-bom, mas cheio de pecados.
Pois eis que, em 2020, chega “Another Round” de Thomas Vinterberg, filme nomeado para o Óscar de Melhor Filme Internacional (estreia em Portugal esta quinta-feira, 29 de maio). Seria de esperar que já a chegar aos 60 anos, Mikkelsen tivesse optado por projetos de grande orçamento, que não dessem muita chatice e garantissem a continuação do seu lugar em Hollywood, onde chegou há alguns anos. Mas não.
O filme em questão, uma trágico-comédia, não tem nada de hollywoodesco, nem se liga ao que tem sido a carreira recente de Mikkelsen. Conta, sim, a história de um grupo de amigos dinamarqueses que estão estagnados na vida. Família já constituída, trabalho assegurado, mas pouco ou nenhum futuro. Mads Mikkelsen é Martin, protagonista, professor resignado, que resolve testar uma teoria que diz que o ser humano nasce com um défice de 0,05% de álcool no sangue. Numa das cenas mais memoráveis (se não a mais) do filme, Martin está finalmente livre, a celebrar a vida, sente-se a catarse — e inveja-se, já que a pandemia não tem permitido momentos como este.
Rodeado dos amigos mais próximos e de estudantes com as hormonas ao alto, atravessado por uma crise existencial que quase o derrota, Mikkelsen dança junto à zona costeira da Dinamarca. Abre o champanhe, espuma por todo o lado e lá vai ele. São longos minutos de uma dança que parece um poema perfeito para o trágico fenómeno da crise de meia idade. Não há efeitos especiais nem mortes, torturas ou planos para derrotar o super herói. O ator dinamarquês parece — e aqui o parece é importante — estar (outra vez) na sua praia.
O que o leitor não sabe (na verdade, pode muito bem saber) é que Mads Mikkelsen foi bailarino profissional. Mas à data da rodagem do filme tinham passado 25 anos desde que o ator dinamarquês não o fazia profissionalmente. Começou a dançar quase sem saber, com a pergunta “e porque não?” na cabeça. Esse é, de resto, o seu lema quando se mete em mais um projeto. Atirar-se para o guião, sem grande pretensão de brilhar.
Se tiver de andar horas a fio no Ártico gelado (“Artic”), que seja. Se tiver de torturar o James Bond (com Daniel Craig em “007: Casino Royale”), que seja. Se tiver de fazer uma versão do Hannibal Lecter de Anthony Hopkins em três temporadas, que lhe valerá o ilustre prémio de virar um meme canibal, que seja. Se tiver de fazer de professor acusado de pedofilia (“The Hunt”, 2012), que seja — esse filme (filmaço, diga-se) valeu-lhe o prémio de melhor ator em Cannes. O desapego à profissão abriu-lhe um lugar no Olimpo dos atores estrangeiros mais respeitados da sua geração. E nesse estrelato, se puder, escolhe sempre o caminho mais negro das suas personagens. Aliás, se fosse ele a decidir, escolhia quase sempre um final trágico.
Mas Hollywood gosta de Mads Mikkelsen e do seu desprendimento. E a sua carteira milionária agradece, ou não andasse a saltitar de franchise cinematográfico em franchise cinematográfico: Star Wars (Rogue One), Avengers ou “Fantastic Beasts and Where to Find Them” (spin-off da saga Harry Potter). Pode parecer o sonho para qualquer outro ator, mas para Mikkelsen, é só mais um trabalho. “Raramente fico deslumbrado, talvez porque o que estou a fazer nunca foi realmente um sonho para mim”, conta ao site Vulture, numa das suas mais recentes entrevistas. Então, qual seria?
De bailarino ao vilão sensível de James Bond (que queria sofrimento real na tela)
Antes de pisar os palcos, fez um pouco de tudo, desde limpezas a trabalhar num bar. Completou o ensino secundário, uma estreia na família. Depois foi bailarino profissional durante oito anos, chegando a partir para Nova Iorque com o objetivo de estudar na Martha Graham Dance Company. Tinha apenas 21 anos e estávamos em finais dos anos 80. Vieram os musicais — “West Side Story” ou “Chicago” — e logo depois uma candidatura ao National Theater School no seu país de origem. “Estive sempre mais apaixonado com o drama de dançar do que com a sua estética”, revela, em entrevista ao The Wall Street Journal (WSJ). Ainda assim, nunca esteve no lugar da frente de uma companhia ou foi sequer considerado um “primo ballerino”. No entanto, acabou por criar família com uma coreografa, Hanne Jacobsen, com quem tem dois filhos.
Foi só aos 30 anos que se estreou no cinema, ao fazer de dealer maníaco, todo tatuado, em “Pusher” (lançado em 1996, tornando-se num filme de culto dinamarquês) de Nicolas Winding Refn — realizador que o puxou para mais uns quantos projetos. Mas o sucesso que vinha quase demasiado tarde acabou por surgir de uma forma que tantos outros, bem mais novos, conhecem muito bem: uma série de televisão polícial, “Unit One”, nos anos 2000. A fama bateu-lhe à porta, deixou de ser um desconhecido e os realizadores de língua inglesa começaram a prestar-lhe atenção. Começava aí aquilo com que nunca sonhou. “Acordava a meio da noite a suar, estava a abandonar tudo em que acreditava. Mas foi a primeira vez em que tive um trabalho que me permitiu comprar uma pequena casa”, conta à Vulture.
E enquanto ganhava estaleca do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos da América, o público dinamarquês dava-lhe prémios de homem mais sexy do país. “O Georgey Clooney da Dinamarca”. Sex symbol, ator respeitado, filho de um sindicalista bancário e de uma enfermeira, fenómeno que se exportou ao lado de nomes como Lars von Trier (realizador) ou do próprio irmão, Lars Mikkelsen, (lembram-se do Putin de “House of Cards”?)
De séries policiais salta para o “Casino Royale”, onde, pela primeira vez na sua carreira, recebe um guião com o seu nome e arranja um agente norte-americano. A responsabilidade (ou a pressão) foi tal que o ator dinamarquês esqueceu-se do argumento no avião. É aqui que Le Chiffre, o primeiro vilão da era Daniel Craig, ganha vida. Tal como a personagem principal, com um lado mais negro e sensível do que todos os anteriores, o vilão surge como alguém que não quer só ver o mundo a arder. Há uma certa humanidade silenciosa que só salta para o ecrã graças a Mikkelsen.
E uma vontade de ir mais longe. Nas várias discussões sobre o argumento que teve com Daniel Craig, há uma cena em que o ator britânico está a ser torturado por Mikkelsen. Era a primeira vez que víamos o 007 completamente nu, completamente frágil. Mas os dois atores queriam ser mais radicais: filmar uma cena em que Craig era mesmo cortado, sofrendo durante uns minutos. Só o realizador conseguiu parar a ambição macabra.
O sotaque escandinavo que vale milhões
É esse blockbuster que o catapulta para a ribalta de Hollywood como ator recorrente nos papéis de mau da fita. O sotaque escandinavo, o ar frio, sedutor, que esconde um lado sombrio, foram suficientes para uma carreira vilanesca. A liberdade criativa diminui, já não há mais cinema dinamarquês independente. Mas não faz mal. “Agora parece que se viraram para o sotaque escandinavo. Não me importo, de todo, se a alternativa é que não represente nos EUA, serei simplesmente o vilão”, revela, em entrevista ao The Guardian.
Depois de ter recusado ficar com o papel de Homem Elástico no filme “Quarteto Fantástico” (2005) — foi Ioan Gruffudd, “seu amigo”, quem acabou por ficar –, o ator dinamarquês veria o seu destino ligar-se aos super-heróis. Antes, já tinha entrado em “Clash of the Titans” (2010) e “The Three Musketeers” (2011) em papéis secundários. Pelo meio ainda se transformou na “bitch” (palavras suas, atenção) de Rihanna, ao entrar no videoclip de “Bitch Better Have My Money” em 2015. Da experiência, guardou as unhas postiças da cantora de Barbados.
Mas claro, mais uma vez, os blockbusters não estavam fartos dele como vilão: em “Doctor Strange” (2016), fez de Kaecilius, feiticeiro que traiu os seus ansiãos para abrir dimensões bem mais negras. No início, parece um psicopata, mas logo percebemos que é muito mais do que isso: um homem que quer voltar a estar reunido com a sua família. O nome do dinamarquês passava assim a fazer parte de um universo cinematográfico gigantesco, com milhões de fãs, que tinha rejeitado à partida.
Mas este casting estereotipado do tipo que só se quer para fazer mal aos outros nunca preocupou muito Mikkelsen. É que tanto no seu país de origem, como no resto da Europa, consegue envolver-se em projetos independentes que lhe permitem explorar personagens mais complexas e sair da bolha do mainstream.
Em 2003, por exemplo, resolveu meter-se em “Torremolinos 73”, do espanhol Pablo Berger, “um projeto louco”, segundo o próprio. A história é, no mínimo, interessante: um vendedor de enciclopédias e a mulher são convidados a fazer filmes pornográficos, que serão depois importados para os países escandinavos. Aceitam fazer um, inspirados por Ingmar Bergman, e Mikkelsen acaba como protagonista. Já as filmagens, foram todo um outro filme. “Ninguém falava inglês, esqueceram-se de mim uma vez na praia. Não tinha dinheiro nem telemóvel. Pensei: o que é que se está a passar? O realizador voltou para casa só com 50% do filme feito, achei que não era possível terminá-lo”, confessa à Vulture. No fim, sim, até gostou do resultado final. “Não me importava que me dessem papéis destes na América”, diz.
Uma rodada que valeu emoções para a vida (e talvez um Óscar)
Mesmo assim, quem trabalha com ele diz que não há ninguém mais perfeito. O que é preciso fazer, faz, sem falhas. Se tiver de se magoar, terá de ser, “faz parte do jogo”. “É o instrumento mais afinado que podes arranjar. Não tem falhas, é 100% técnico, não é preciso repetir”, conta o realizador do filme que agora foi distinguido com um Óscar, Thomas Vinterberg, ao Wall Street Journal.
Vinterberg tem todas as razões para confiar no ator dinamarquês: na preparação para o filme, ele e os outros elementos do elenco foram para um “booze boot camp” (campo de treino de álcool) para estudar os vários graus de intoxicação. Ou seja, para se sentir o efeito, qual ator do método, é preciso treinar o beberete para encontrar o equilíbrio quando as câmaras estivessem ligadas. O estado perfeito de representação. E assim foi.
Mas nem tudo foi fácil nas filmagens — e nada tem a ver com álcool. Pouco antes da rodagem de “Another Round”, a filha do realizador, amigo de Mikkelsen, morreu num acidente de viação. Faria o papel de filha do ator dinamarquês. A equipa ficou em choque, mas Vinterberg decidiu levar tudo até ao fim. Todos aceitaram. “Trouxe um sentido de vulnerabilidade ao estúdio. Nunca vi tantos adultos a chorar a meio de uma cena”, conta. Celebrou-se a vida acima de tudo. O resultado valeu o prémio que agora se vê.
É neste e noutros caldeirões de emoções que a vida profissional de Mads Mikkelsen tem estado envolvida. Tem aceitado os mais complexos desafios na carreira, sem hesitar, mas não se prende ao que faz. E dizer complexos é dizer pouco: em “Valhalla Rising” (2009), aceitou andar pelas montanhas escocesas, com chuva, a ser mordido por mosquitos e a cair das rochas ; em “Artic” (2018), andou sozinho durante 19 dias no gelo da Islândia a transportar a atriz secundária de um lado para o outro.
Mas, nos dias de folga, recusa falar de trabalho. Quase nunca vê filmes. Fuma, mas gosta de fazer desporto ou andar de bicicleta. Em miúdo andou obcecado com os Monty Python e aprendeu inglês com Gene Kelly e Burt Lancaster. Em adulto, prefere largar-se desse universo. Tanto que, podendo e sabendo, optaria por “ir jogar futebol para o Barcelona”, largando a profissão para sempre. “Claro que não vai acontecer, mas aceitaria. Não vou ter saudades de ser ator”, disse ao WSJ.