O filme que a tornou uma celebridade mundial fala de nómadas, mas o destino de Chloé Zhao parecia traçado há muito. Se não fosse com “Nomadland”, seria com “Eternals”, como começara já a ser com “Songs My Brother Taught Me”. Zhao está destinada a ser um dos nomes essenciais do cinema da primeira metade do século XXI. Não esquecendo esses pequenos grandes pormenores de ser mulher e asiática – e logo agora. Foi precisamente a segunda mulher a vencer o Óscar de Melhor Realização, em 93 anos de prémios (a primeira foi Kathryn Bigelow, por “The Hurt Locker”), e a primeira asiática.
Digamos que vir ao mundo em Pequim em 1982 não nos coloca, exatamente, no primeiro lugar da grelha de partida para a corrida por um lugar em Hollywood. Ter uma mãe que chegou a fazer teatro amador no Exército de Libertação Popular e mais tarde por madrasta, quando já estava de saída de casa, uma atriz de comédia que costumava ver na televisão (Song DanDan), talvez dê um aconchego à vocação, mas, convenhamos, continua a não abrir propriamente portas do outro lado do mundo.
Onde o destino de Chloé Zhao começou a ficar traçado foi na paixão pelos filmes de Wong Kar-wai e Ang Lee (um natural de Hong Kong e outro de Taiwan – não os lugares mais amados pelo regime chinês), no interesse pela cultura ocidental e nos desenhos de manga que fazia e na fan fiction que escrevia durante as aulas. O comportamento reiterado valer-lhe-ia a mudança para um colégio interno em Inglaterra, a ver se se metia na ordem, patrocinado pelo pai, Yuji Zhao, um bem-sucedido industrial do aço e, mais tarde, do imobiliário. Não meteu – e por isso estaremos sempre em dívida para com Yuji.
E, de repente, zhao!
A partir daqui, já não haveria regresso à China. Quando a jovem Chloé voltasse a mudar, seria para acabar o secundário em Los Angeles e fazer um bacharelato em Ciência Política, formação, supomos, que também não será a mais apreciada entre o Comité Central do Partido Comunista Chinês – não quando se trate de Ciência política não chinesa, pelo menos. Ainda assim, tudo isto poderia ter sido posto para trás das costas, não fosse uma aparente troca de um “t” por “w”, tão próximo no alfabeto e distante no sentido. Mas já lá vamos.
Por enquanto, a etapa seguinte era partir para a Costa Leste e ir estudar cinema em Nova Iorque, enquanto, ou porque o pai Zhao já não estava para aí virado ou porque é simplesmente a outra metade da formação de todos quantos se metem nestas andanças, acumulava com toda a espécie de biscate que ajudasse a pagar a renda. Spike Lee foi um dos professores; “Post”, em 2008, a primeira curta. A terceira, “Daughters”, em 2010, já estreava em Clermont-Ferrand e andava a varrer prémios estudantis.
Do sol nascente para os westerns
Tem graça que venha alguém do Oriente reinventar o mais ocidental dos géneros cinematográficos, mas é o que Chloé Zhao está a fazer. E, na verdade, talvez isso não tenha apenas graça, mas poesia e até alguma satisfação pelo facto do mundo em que vivemos, no meio de todas as segregações, proporcionar destas singulares fórmulas químicas de arte e liberdade.
A primeira longa, “Songs My Brother Taught Me”, estreou logo em Sundance, em 2015, e já então Zhao andava pelas badlands, mais concretamente pelo Dakota do Sul, a filmar a história de dois irmãos Sioux na reserva índia de Pine Ridge. Chegou a Cannes e foi nomeado para melhor primeira obra nos Independent Spirit Awards (os Óscares – para utilizar a analogia habitual – do cinema “independente”, eterno eufemismo para “baixo orçamento”).
Dois anos depois, “The Rider” já estreava em Cannes, vencia o Art Cinema Award e levava Zhao de novo às nomeações dos Independent Spirit, mas, desta feita, nas principais categorias: melhor filme e realização. Ainda não chegaria para ganhar, mas deixava-a nas bocas da crítica e na mira dos estúdios. Estávamos de novo no território do western, acompanhando a viagem de descoberta pessoal de um jovem cowboy. A realizadora-produtora-argumentista-editora-faz-tudo ganhava experiência a dirigir um elenco fundamentalmente composto por atores não profissionais e contava, desta vez, com a ajuda do senhor Zhao pai como produtor executivo. Mas a sua “independência” estava mais do que conquistada. Em Setembro do ano seguinte e com apenas duas longas-metragens no currículo, a Disney telefonava-lhe para lhe propor a realização de “Eternals”.
Da poeira do deserto ao pó das estrelas
Sim, enquanto filmava “Nomadland”, triunfo do cinema dito independente, de novo com uma trupe essencialmente composta por não atores, nómadas verdadeiros do Midwest, Chloé Zhao estava já a trabalhar na produção de um blockbuster milionário acerca de um grupo de super-heróis alienígena a quem cumpre, mais ou menos como de costume, salvar a Terra. O filme, que se espera poder estrear lá para final do ano, promete revolucionar o Marvel Cinematic Universe (MCU), trocando muito chroma azul e CGI por iluminação natural e cenários reais nas Canárias e no Reino Unido.
Para Zhao, é a primeira vez que lhe pedem que, em vez de fazer tudo, se “limite” a realizar. E, em vez de Linda May, Swankie e outros nómadas de autocaravana e cadeira de lona, estará a dirigir Angelina Jolie, Kit Harington e Salma Hayek – e a belíssima Lauren Ridloff, já agora, atriz surda que acabámos de ver em “O Som do Metal”. Se o público habitual do MCU vai gostar, não sabemos, mas nós já gostamos antes sequer de ter visto. Só pela esperança de o cinema de grande orçamento não estar ainda condenado, afinal, a ser apenas uma espécie de super-desenhos animados.
Strike às estatuetas
Antes dos Óscares, “Nomadland” já tinha vencido mais de 200 prémios, incluindo o Leão de Ouro em Veneza, os Bafta, os Globos de Ouro, os Director’s Guild Awards (isto é, o sempre apetecível reconhecimento dos pares na realização) e, finalmente, os Independent Spirit. Zhao, que cita Werner Herzog e Terrence Malick como as suas outras grandes influências, tornou-se a cineasta mais galardoada de sempre numa só temporada de prémios e, além disso, num nome incontornável em qualquer futura história da igualdade de género e etnia no mundo do showbiz. Afinal, na maioria dos casos, é apenas a segunda mulher da História a vencer estes prémios (nuns casos, depois de Barbra Streisand; noutros – quase todos – de Kathryn Bigelow) e a primeira não caucasiana a consegui-lo.
Um ano depois da formidável vitória do coreano “Parasitas” e quando a tensão entre americanos e chineses está ao rubro – não só, mas também – por causa da pandemia da Covid-19 –, o cinema volta a dar um extraordinário exemplo ecuménico… que talvez não vá servir para nada.
Sabes que tudo começou no A… e acabou num W
Em final de Fevereiro, quando “Nomadland” triunfou nos Globos de Ouro, os media estatais chineses (há outros?) celebraram o feito como uma vitória chinesa e a internet encheu-se de elogios ao discurso de aceitação apaixonado da realizadora como uma inspiração para futuros criadores. Mas, rapidamente, voltaria à superfície uma entrevista dada por Zhao à News.com.au um ano antes e em que era atribuída à realizadora a pouco simpática e muito esclarecedora frase: “The U.S. is now my country” – “Os Estados Unidos são agora o meu país”. O site editaria mais tarde o artigo, dizendo que se tratara de uma gralha e substituindo “now” por “not”: “Os Estados Unidos não são o meu país”, uma pequena diferença ortográfica de impacto geopolítico intercontinental.
E enquanto não nos conseguimos lembrar de maior prova da importância dos revisores na imprensa, o estrago estava feito. Considerado o todo da frase original (“The U.S. is now my country, ultimately, but maybe it is easier for me than how I see my friends are reacting, especially this year”), é bem provável que se tenha mesmo tratado de uma gralha, mas toda a carreira de Zhao, fascinada por política e pelo western e já com algumas observações acerca das “mentiras” da China no currículo, não tem como ser reduzida à troca de duas letras separadas apenas por outras duas no alfabeto (e, a propósito, também no teclado).
De um dia para o outro, desapareceram da internet chinesa as referências a Chloé Zhao e a “Nomadland”. E a Disney, por esta hora, já deve estar a fazer contas ao estrago que isso poderá causar quando chegar o momento de estrear “Eternals” nas bilheteiras chinesas. É que uma coisa é ser independente; outra, inconveniente. Nosso senhor Mickey Mouse tenha piedade.