O primeiro-ministro, António Costa, admite a possibilidade de o futuro da Europa passar por um mecanismo de geometria variável, a fim de não se bloquear o desenvolvimento da União Europeia, nem criar ruturas.
“Não podemos estar bloqueados ou confrontados com a opção dramática de ficar bloqueados pela falta da vontade de alguns, nem correr o risco de novas ruturas pelo voluntarismo de outros”, diz em entrevista à Lusa o primeiro-ministro, que no domingo intervirá como presidente do Conselho da UE na cerimónia oficial da abertura da conferencia sobre o Futuro da Europa, em Estrasburgo.
Para António Costa, “tem de se conseguir encontrar um ponto onde seja possível que quem queira ir mais longe ou mais depressa, o possa fazer, sem obrigar os outros a sair, e que quem não quer ir mais longe ou mais depressa, não possa impedir quem o quer fazer”.
O primeiro-ministro coloca apenas como condição essencial que “as condições de participação sejam definidas por todos com base em critérios claros e objetivos e que esteja sempre garantida a liberdade de quem quer aderir” o possa fazer.
Os mecanismos de geometria variável estão previstos no Tratado de Lisboa, sendo nomeadamente já aplicados em casos como a zona euro ou Schengen, onde nem todos os países querem ou podem aderir.
Na opinião de António Costa, este tipo de geometria poderia eventualmente incluir a “Europa social”, na medida em que a sua evolução conjunta se revelou mais forte do que se podia pensar no passado.
A testemunhá-lo, segundo Costa, está o facto de embora as políticas sociais serem essencialmente nacionais e não da competência da União, isso não ter impedido que a Comissão Europeia avançasse para a elaboração de um plano de ação.
Pelo menos 11 estados-membros tomaram uma posição conjunta, em abril, sinalizando precisamente a diferença de competências entre a União e os estados.
Todavia, afirma o primeiro-ministro, isso “não impediu nenhum de subscrever os princípios gerais do Pilar Social, não impediu a Comissão Europeia de avançar com o plano de ação e espero que não impeça nenhum de no próximo sábado dar um endosso político forte à execução deste plano”, conclui.
Acordo geral na Cimeira Social será um marco na história da UE, diz Costa
O primeiro-ministro espera que a Cimeira Social, no Porto, na sexta-feira, seja um marco na história da União Europeia (UE) com a obtenção de um acordo geral subscrito por instituições europeias e, pela primeira vez, parceiros sociais.
“Se conseguirmos na Cimeira Social obter pela primeira vez um compromisso em que o Conselho e a Comissão assinam um acordo com a central europeia dos sindicatos, a ETUC, com a Business Europe, que é a associação das SIBS europeia, com a confederação das pequenas e médias empresas (PME) europeias, com a confederação das empresas dos serviços gerais, então é a primeira vez na história da União Europeia que há um acordo geral que reúne todos os parceiros sociais e as instituições europeias”, afirmou António Costa em entrevista à agência Lusa.
De acordo com o primeiro-ministro de Portugal, país que preside ao Conselho da UE até junho, esta será “a primeira vez” que um compromisso com esta amplitude é alcançado, “porque em Gotemburgo (na Suécia, em 2017) houve uma declaração que teve um acordo a nível institucional, mas não foi assinado por nenhum parceiro social”.
No primeiro ensaio de cimeira social, quando (Jean-Claude) Juncker era primeiro-ministro do Luxemburgo, os sindicatos não estiveram sequer à mesa. Estiveram simplesmente em manifestação fora. Desta vez, estaremos todos, durante a cimeira, na sexta-feira à tarde, chefes de Estado e de Governo, dirigentes sindicais, dirigentes de empresas, membros da sociedade civil, académicos, nos diferentes painéis, numa discussão aberta, transparente e frontal sobre o que é que deve ser o futuro da Europa social”, sustenta António Costa.
Para o primeiro-ministro, “a possibilidade de haver esse acordo, em si, será um marco muito importante” para a União Europeia.
No dia a seguir, no sábado, durante a reunião informal de chefes de Estado e de Governo da UE, “apesar das diferentes visões que os 27 estados-membros têm sobre qual deva ser o papel da União e dos estados-membros em matéria de política social”, António Costa diz esperar conseguir “uma declaração comum de apoio ou de endosso político do plano de ação” da Comissão Europeia.
“Será obviamente um marco. Depois, temos todo o trabalho pela frente de concretizar este plano de ação que foi apresentado em março passado”, completou o primeiro-ministro.
Nesta entrevista, António Costa procurou também relevar o caminho percorrido em termos de desenvolvimento do Pilar Social, desde 2017, com a Cimeira de Gotemburgo, na Suécia, onde então se aprovaram 21 princípios gerais.
Na altura, fui um dos que disse: muito bem, temos princípios gerais, mas agora temos de passar das palavras aos atos, precisamos de um plano de ação. Tivemos de esperar de 2017 até 2021 para haver este plano”, refere.
Segundo o primeiro-ministro, no trabalho preparatório feito pela presidência portuguesa com a Comissão Europeia, ficou logo prevista a existência de um plano de ação para o desenvolvimento do Pilar Social.
“A Comissão Europeia cumpriu, apresentou a tempo e horas o plano de ação, esteve em discussão pública e lançou-o. E temos agora a oportunidade de os parceiros sociais poderem dizer não só que estão de acordo, mas assinarem um documento em que se comprometem a apoiar a execução do plano de ação”, reforça.
António Costa até admite que esse ato seja sobretudo “um gesto simbólico”.
Mas é daqueles gestos simbólicos que tem uma carga muito importante, porque estamos a falar de entidades que representam os parceiros sociais à escala europeia. Haver a assinatura também do presidente do Parlamento Europeu é muito importante, porque o Parlamento Europeu é colegislador nesta matéria”, salienta.
Face a esta evolução, o primeiro-ministro manifesta-se confiante de que no sábado, no Conselho Europeu informal, se conseguirá também a aprovação da Declaração do Porto, um documento em que o Conselho dá “um claro endosso político a este Pilar Social”.
“Não me posso antecipar às conclusões do Conselho. Mas se perguntam quais são as metas que eu tenho para estes dias, são estas”, frisa.
Questionado sobre os temas sociais que ficam de fora da Cimeira Social, António Costa aponta que há um conjunto de iniciativas legislativas que a Comissão já pôs em debate público, designadamente a diretiva sobre a conciliação da vida familiar e pessoal e o salário mínimo.
“Em algumas delas, há uma divergência grande entre os estados-membros. Mas essas não vão ser discutidas nesta cimeira. Na cimeira vamos discutir o plano de ação. Essas estão a seguir o seu ritmo, o seu debate próprio nas instâncias próprias do Conselho, mais concretamente no Conselho dos Assuntos Laborais e Sociais”, justifica.
Na questão do salário mínimo, segundo António Costa, alguns dos estados-membros que se opõem à diretiva não o fazem por serem contra o salário mínimo.
Opõem-se pelo facto de o salário mínimo ser imposto por lei ou poder vir a ser imposto por lei, que é o caso dos nórdicos. Os nórdicos têm com certeza um modelo social mais avançado, mas têm princípios. Para eles, o Estado não pode intervir no diálogo social entre os parceiros para a fixação do salário mínimo”, alegou ainda o primeiro-ministro.
Ou seja, para António Costa, a questão da diretiva sobre o salário mínimo, “porventura, não se concluirá a tempo da presidência portuguesa” do Conselho da UE.
“Mas estou convencido de que chegaremos lá”, acrescenta.
“Mensagem” é combater o populismo e o medo
O primeiro-ministro afirma também que a escolha da Cimeira Social como o grande evento da presidência portuguesa do Conselho da União Europeia tem como “razão fundamental” o combate ao populismo e ao medo.
“Aquilo que nós desenhamos com a nossa presidência é a mensagem que o Pilar Social é a base de confiança de todos” e que “ninguém será deixado ao abandono”, diz António Costa na mesma entrevista.
“O que mais tem alimentado o populismo é o medo, que se funda em diversas razões, uma das quais é uma profunda angústia social que as pessoas têm relativamente às transformações que o futuro lhes impõe”, nomeadamente o receio de perder o emprego, sublinha o primeiro-ministro.
Considerando esta perceção “altamente perigosa”, António Costa destaca que não se pode correr o risco já verificado em vários momentos da História de como “a globalização deixou uma classe média mais empobrecida, mais isolada, mais receosa do seu futuro”.
O primeiro-ministro salienta que isto acontece tanto em eleitores de (Donald) Trump, como eleitores e candidaturas populistas na Europa.
“Há uma raiz comum que tem a ver com esta ideia de que as pessoas são deixadas ao abandono”, sustenta.
Ora, afirma o primeiro-ministro relativamente ao Pilar Social, “a transição climática e digital podem ser os motores da recuperação económica, (…) e temos que assegurar o investimento efetivo na qualificação e na requalificação de todas as pessoas para que todos possam participar na mudança”.
Temos de garantir fortes sistemas de proteção social para que ninguém seja deixado ao abandono, temos que garantir condições de investimento às pequenas e médias empresas para que possam melhorar a sua competitividade”, acrescenta.
Segundo António Costa, esta “tripla dimensão de formação, inovação e proteção social é absolutamente fundamental” para todos sentirem uma rede de segurança que permita fazer uma “travessia que obviamente é desafiante, (…) mas sem termos que temer os riscos associados a essa travessia”.
O primeiro-ministro considera que é uma “irresponsabilidade” os políticos “iludirem” que estas mudanças têm custos sociais e, sabendo-o, que não organizem respostas sociais adequadas.
“Por isso quisemos repor o tema do Pilar Social e os direitos sociais no centro do debate político da União Europeia e até agora conseguimos”, destaca.
Segundo o primeiro-ministro, o Eurobarómetro, no final do ano passado, mostrava que 88% dos europeus confiavam e desejavam a Europa social, encarando-a como uma “mais-valia” para as políticas sociais nos seus próprios países.
Este é um daqueles casos em que há uma certa dissonância entre algum mecanismo institucional e a vontade geral da opinião pública. Admitamos que esta resposta terá sido inflacionada pela importância que os europeus atribuíram no último ano ao tema da saúde, por razões evidentes”, diz.
E conclui: “Mesmo assim, isso significa que a Covid-19 deixa várias lições, uma das quais é a que há uma mais-valia efetiva da União Europeia em toda a área social, em particular na área da saúde”.
Costa desvaloriza contestação de CGTP e BE e destaca UE centrada na vida das pessoas
O primeiro-ministro desvaloriza a contestação da CGTP-IN e do Bloco de Esquerda à agenda da Cimeira Social e destaca que a reunião europeia estará centrada na vida das pessoas, sobretudo no emprego.
Esta posição foi defendida por António Costa depois de confrontado com eventos paralelos que foram marcados pela CGTP-IN e Bloco de Esquerda, também para o Porto, por ocasião desta cimeira que tem como objetivo desenvolver o Pilar Social Europeu.
O líder do executivo nega a existência de qualquer contradição entre a política social seguida pelo seu Governo em Portugal e aquilo que agora é proposto no âmbito da presidência portuguesa do Conselho da União Europeia (UE).
Já sobre as ações agendadas pelo Bloco de Esquerda e CGTP-IN, o primeiro-ministro argumenta que “uma das grandes vantagens da democracia é existirem visões diferentes sobre o que é necessário fazer, visões diferentes sobre a legislação do trabalho, visões diferentes sobre a evolução da economia e sobre as políticas económicas”.
Isso é normal e legítimo em democracia e a democracia não se suspende porque há uma Cimeira Europeia. Portanto, é natural que cada partido diga o que tem de dizer. É sabido, aliás, que a CGTP-IN não é propriamente uma central sindical muito pró-europeia. E o Bloco de Esquerda integra um grupo europeu que faz parte de uma oposição no Parlamento Europeu ao atual executivo comunitário. Portanto, aí não vejo qualquer surpresa nem qualquer alteração”, remata.
Em seguida, o primeiro-ministro procura justificar o caráter especial que a presidência portuguesa atribui à reunião europeia no Porto, dizendo que as cimeiras se dedicam “habitualmente a coisas bastante abstratas”.
“Desta vez, temos uma cimeira que está concentrada sobre algo que tem a ver com a vida do dia a dia das pessoas, como é que vai ser o seu emprego no futuro, quais vão ser as condições que têm para poderem transitar de emprego, como vão ter acesso a formação que lhes garanta poderem ter mais e melhor emprego, como vão ver assegurada a proteção social em caso de perda de emprego”, advoga.
António Costa assinala depois que, caso se analise o plano de ação dos direitos sociais que estará em discussão na Cimeira Social, este documento “tem a dimensão laboral, a do combate à pobreza, e tem as dimensões que têm a ver com a política de habitação e com o acesso à habitação a preços acessíveis”.
“Tem a ver com uma política europeia de integração dos sem-abrigo. E, sobretudo, um foco muito grande na importância decisiva de responder às necessidades das novas gerações”, indica.
Segundo o primeiro-ministro, em toda a Europa, registam-se “taxas inaceitáveis de desemprego juvenil, níveis de precarização e de desregulação do trabalho das novas gerações e dificuldades de acesso à habitação”.
E essa é a maior ameaça à dinâmica demográfica na Europa. Os populistas gostam de dizer que a grande ameaça demográfica à Europa é a imigração. Mas a maior ameaça demográfica ao futuro da Europa é, de facto, a ausência de condições para as jovens gerações se poderem autonomizar e terem a liberdade de construir a sua própria vida”, contrapõe.
Nesta entrevista, o primeiro-ministro recorre igualmente às razões que estiveram na origem dos protestos por parte dos “gilets jaunes” (coletes amarelos) em França para sustentar a sua tese.
“Em França, começou quando o Presidente (Emmanuel) Macron adotou um conjunto de medidas fiscais para desincentivar a utilização de combustíveis fósseis. Toda a gente aplaude a Greta (Thunberg), os grandes movimentos ambientalistas, mas depois nós não podemos esquecer que essa transição também tem custos para pessoas. E nós estamos a ver”, adverte.
Para António Costa, as políticas de transição climática e de transição digital têm por isso de ser “acompanhadas de fortes medidas sociais”.
Caso contrário, criamos fraturas, aumentamos assimetrias, e com essa disrupção social comprometemos o sucesso, que não podemos comprometer, da transição que temos de fazer”, acrescenta.