Como incentivar a mudança de comportamentos para acelerar a transição energética e potenciar poupanças para as famílias e até maximizar a receita do Estado? A equação está na proposta apresentada pela APREN (Associação Portuguesa de Energias Renováveis), a partir de um estudo da consultora Deloitte que defende uma mini-revolução nos impostos sobre a energia, já a partir do próximo ano, ainda que de implantação gradual até 2030, quando Portugal tem de cumprir metas de redução de emissões mais ambiciosas.

Os promotores da iniciativa defendem que esta é uma proposta sistemática que procura alinhar a fiscalidade e a política energética, corrigindo incongruências que ainda existem na taxação das diversas formas de energia, entre as intenções e a prática. E sublinham que as alterações defendidas não devem ser “retiradas do contexto”. Mas há algumas que dão mais na vista.

Do aumento do imposto sobre o gasóleo à criação de deduções no IRS e IRC para incentivar compra de carros elétricos e equipamentos mais eficientes, passando pela eliminação da contribuição audiovisual da fatura elétrica e a baixa do IVA da luz para todos, e por propostas que vão de encontro a reivindicações recentes das  elétricas. As propostas tiveram uma reação mista por parte dos dois governantes que participaram no evento.

Para o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, “representam os interesses próprios”, mas devem contribuir para a reflexão sobre o anunciado reequilíbrio na fiscalidade verde. António Mendonça Mendes é um “estudo qualificado” que será considerado no trabalho de preparação da diretiva sobre os impostos da energia a aprovar até ao final do ano e que servirá de linha orientadora para o que o Governo pode propor.

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Já o secretário de Estado da Energia, João Galamba, defendeu que o ” instrumento mais poderoso” para transição energética não são os impostos, mas sim do preço das licenças de carbono que atingiu um recorde de 50 euros este ano. E reforçou que o Governo já deu vários passos no sentido indicado com o fim gradual das isenções dadas ao imposto petrolífero para geração elétrica.

O presidente da APREN, Pedro Amaral Jorge, destacou a necessidade de promover um ecossistema fiscal alinhado com a estratégia do PNEC (Plano Nacional de Energia e Clima), taxando o que é poluente e não taxando o que permite combater as alterações climáticas. Segundo dados do Deloitte, atualmente a eletricidade paga mais euros por CO2 produzido (256 euros por tonelada) do que os produtos petrolíferos (215 euros por tonelada).

Partindo do pressuposto de penalizar os consumos e comportamentos com maior impacto tem termos de emissão e aliviar os encargos sobre as energias e tecnologias ditas verdes, as propostas conhecidas esta quinta-feira vão desde a fiscalidade nos combustíveis rodoviários, até aos impostos na eletricidade, passando pelo setor automóvel e outros transportes. Têm como destinatários famílias, com deduções no IRS à substituição de equipamentos, e empresas com descontos no IRC associados à mudança para tecnologias ou energias menos poluentes.

O guião apresentado pela Deloitte parte de um bolo de receitas anuais na casa dos 11 mil milhões de euros — com base em números de 2019 porque 2020 foi um ano atípico — e pretende redistribuir as fatias por tipo de energia, mas sem penalizar demasiado a receita do Estado, nem aumentar, ou até reduzir, os custos das famílias com a energia, que serão materializados com as pretendidas mudanças de comportamento e consumo.

Medidas para famílias e empresas

Combustíveis: Nivelar de forma gradual a carga fiscal sobre o gasóleo (os carros a gasóleo são apontados como mais poluentes) com a da gasolina, um caminho defendido na reforma verde de 2014. Os socialistas chegaram a dar alguns passos nesse sentido (e para reequilibrar as contas públicas em 2016), mas depois pararam, no meio de muita oposição política ao agravamento dos impostos sobre os combustíveis.

A carga fiscal da gasolina era de 68%, contra 60% no gasóleo (tendo como referência agosto do ano passado). A proposta feita implicaria um aumento de 30 cêntimos no preço final do diesel. A ideia é que a diferença seja reduzida em 50% já no próximo ano, o que reduziria o impacto a 15 cêntimos por litro (e com base em valores de agosto). E gradualmente eliminada até 2030, o que representaria um agravamento dos custos com este combustível de 237 euros por ano, que representaria mais receita fiscal. De fora desta nivelação, fica o reembolso do imposto petrolífero assegurado aos transportadores de mercadorias, um incentivo ao gasóleo que custa mais de 100 milhões de euros e cuja manutenção é justificada por Afonso Arnaldo da Deloitte com a inexistência ainda de alternativas de combustível/ou transporte suficientemente atrativas.

Compra de carros elétricos: Substituir a subsidiação atual à aquisição, que está limitada aos primeiros aderentes, uma dedução específica a criar no IRS e IRC para a aquisição de veículos totalmente elétricos que poderá vir a ser gradualmente reduzida a partir de 2026. Este incentivo tem de estar associado ao abate de veículos de combustão interna. Para a metade das famílias que não tem rendimentos para ter direito a deduzir despesas (porque não paga IRS) — e porque um carro elétrico é um investimento avultado — Afonso Arnaldo, admite uma solução tipo Ivaucher. Estas deduções poderão reduzir até 110 milhões de euros por ano a receita do Estado, segundo a simulação apresentada.

Imposto único de circulação (IUC). Agravar mais as taxas de IUC nos automóveis mais antigos e poluentes e manter a isenção para veículos elétricos pelo menos até 2026, ano em que os fiscalistas admitem que o crescimento do mercado permita dispensar o incentivo.

Baixar o preço da eletricidade. Com a transição energética a passar muito pela eletrificação da procura de energia (sobretudo no segmento dos edifícios), a Deloitte defende a aceleração da tendência de descida dos preços da eletricidade, não só reduzindo os custos do sistema (a dívida tarifária que onera as tarifas deverá ser eliminada em 2024), mas eliminando ou baixando taxas e impostos que carregam a fatura da luz. O exemplo dado é a contribuição audiovisual, que nada tem ver com a eletricidade, uma proposta que foi feita no passado por vários partidos e agentes, mas que nunca chegou a ir para a frente devido à falta de alternativas que permitam financiar na mesma proporção a RTP. Os autores apontam também para uma descida mais transversal do IVA da eletricidade para todos os consumidores (desde dezembro que está em vigor uma redução segmentada por escalões de consumo cujos efeitos na conta da luz são pouco sentidos).

Edifícios. Incentivar a instalação ou substituição de bombas de calor com deduções no IRS e penalizar o adicional de ISP sobre combustíveis fósseis usados para aquecimento (gás e diesel).

Indústria. Deduções de 30% no IRC de investimentos para a transição energética que permitam reduzir o consumo de energia ou transitar para combustíveis com menos emissões, como os gases verdes.

Incentivos ào hidrogénio verde para a sua utilização pela indústria, mas também em infraestruturas de produção e transformação de processos industriais, através de deduções no IRC.

O impacto até pode ser positivo para o Estado em termos de cobrança líquida com mais de mil milhões de euros até 2030, com um efeito claramente favorável de 200 milhões de euros anuais a partir de 2026, sobretudo pelos impostos sobre o consumo (combustíveis e taxa de carbono).

Já para as famílias as simulações apontam para efeitos que vão desde o residual ao claramente positivo no que toca à poupança nos custos com o consumo energético. Para rendimentos médios e numa situação em que não sejam alterados equipamentos ou tecnologias, esse custos poderão subir 2%, caso utilize o gás em casa e o gasóleo no carro. Para quem já tem aquecimento elétrico e caldeira, estima-se uma poupança de 5%. Estes valores serão potenciados de forma significativa se houver troca de equipamentos de aquecimento ou automóvel.

Para uma família de baixos rendimentos, cujo capacidade para investir em novos equipamentos é mais limitada, o impacto é sempre favorável em termos de redução da fatura que oscilará entre os 3% anuais e 15% para quem tem já equipamentos elétricos.

Medidas positivas para as elétricas que não passam por impostos

Entre as muitas propostas há também medidas que vão de encontro a reivindicações feitas pelas elétricas ao Governo de há anos e que à partida não têm impacto direto no preço da eletricidade, mas sim nos custos imputados às empresas.

A começar pela tarifa social de eletricidade para famílias de baixos rendimentos, um encargo de 100 milhões de euros suportados pelas produtoras e que o estudo propõe que passe para a Segurança Social ou para a generalidade dos consumidores. A EDP processou o Estado português na Comissão Europeia por causa desta obrigação que incide sobre as empresas do setor.  O estudo defende também o fim mais rápido da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE) — já em 2022 em vez de ser até 2025. A CESE paga pelas empresas desde 2014 tem sido nos últimos canos canalizada para o abate à dívida tarifária.

Para o secretário de Estado da Energia existe um equívoco. A CESE e o clawback (mecanismo de neutralização das assimetrias fiscais entre Portugal e Espanha) não não impostos sobre o consumo (aliás a lei proíbe que sejam repercutidos nos consumidores. Da mesma forma que, sublinhou, os CIEG (custos de interesse económico geral) que oneram o preço da eletricidade em Portugal não são impostos cobrados pelo Estado.

Galamba assinala que um dos CIEG que mais custa na fatura elétrica é o que resulta do sobrecusto com os contratos mais antigos de energia renovável (eólicas), que aliás subiu muito no ano passado. Mas defende que isso pode mudar este ano por causa da subida do preço da eletricidade no mercado grossista, que anda na casa dos 80 euros por MW/hora, um valor que é comparável à tarifa garantida em alguns contratos.

Se os preços se mantiverem neste patamar, “podemos ter pela primeira vez algo que vai gerar perplexidade para alguns. O sobrecusto das renováveis pode transformar-se em alguns casos num sobreganho”. Ao contrário de outros países, Portugal tem uma almofada (nos polémicos contratos das eólicas) que o protege da subida do preço”.