“Mulheres e Resistência — ‘Novas Cartas Portuguesas’ e outras lutas”, que vai estar patente até ao dia 31 de dezembro, parte de um livro escrito por três mulheres, decidido em maio de 1971 e publicado um ano depois, com a primeira edição recolhida e destruída pela Censura, três dias após o seu lançamento.
Nos 50 anos do início da escrita das “Novas Cartas Portuguesas”, por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, que deram origem ao processo das Três Marias, a exposição revisita a atualidade da luta das mulheres pelos seus direitos, procurando compreender o papel da repressão, o valor da solidariedade e a importância da vitória deste processo literário e político.
“Uma das ideias era abordar a questão das mulheres e da resistência e, a partir daí, associar os 50 anos do início da escrita das ‘Novas Cartas Portuguesas’, pelas Três Marias, a um processo mais geral e amplo da luta das mulheres pelos seus direitos e por direitos sociais, e da luta pela liberdade no nosso país”, disse à Lusa a diretora do Museu do Aljube Resistência e Liberdade, Rita Rato.
A este tema central foi associada a luta mais geral e mais ampla das mulheres em Portugal durante a ditadura, com um núcleo expositivo das várias expressões de resistência popular, desde o inicio dos anos de 1930 até ao 25 de Abril, como as lutas operárias, as lutas camponesas, as lutas antifascistas, as lutas dinamizadas por outras mulheres intelectuais, com uma dispersão no território muito significativa, tentando até revelar que a resistência das mulheres está para lá do que é mais conhecido, particularmente nos campos do sul e na cintura industrial de Lisboa, destacou Rita Rato, que é também uma das curadoras.
“Ao longo desta exposição conseguimos concluir isso, que de certa forma existiram processos paralelos de resistência, de formas muito diversas de participação das mulheres, e isso também revela a riqueza da mobilização feminina na luta pelos seus direitos no nosso país”, afirmou.
A outra curadora da exposição, Joana Alves, explica que quiseram deixar claro que, antes das Três Marias, houve outras mulheres que também lutaram para que elas pudessem escrever o livro e que as mulheres atuais herdaram as lutas delas, criando um fio condutor, que liga esta “luta contínua”.
“Temos os processos originais de apreensão dos livros da Natália Correia, que foi a editora das ‘Novas Cartas Portuguesas’, temos também o processo da ‘Minha Senhora de Mim’, o livro da Maria Teresa Horta, que foi talvez o que impulsionou a escrita das ‘Novas Cartas'”.
O livro de poesia “Minha Senhora de Mim” foi editado em abril de 1971 pela Dom Quixote, mas dois meses depois a editora foi objeto de um auto de busca e apreensão da obra por parte da PIDE (polícia política da ditadura do Estado Novo).
A proprietária da editora, Snu Abecassis, foi advertida de que estava proibida de publicar qualquer obra de Maria Teresa Horta, e a autora foi vítima de um espancamento na rua.
Na altura, Maria Velho da Costa, ao saber do sucedido, questionou Maria Teresa Horta: Se uma mulher causa todo este burburinho e confusão, o que aconteceria se fossem três?
Esta frase foi o ponto de partida para a escrita das “Novas Cartas”, e é o ponto de partida da exposição, a acompanhar uma fotografia das Três Marias a sair do tribunal.
O Arquivo Nacional Torre do Tombo disponibilizou os processos originais da censura, da proibição do livro e do processo da Maria Teresa Horta.
O despacho da Direção-Geral da Informação, datado de maio de 1972, que proíbe “a circulação” das “Novas Cartas Portuguesas” e recomenda “a instrução do processo-crime”, acusa a obra de “preconizar a emancipação da mulher, sempre, em todos os seus aspectos”, e de possuir passagens “francamente chocantes, por imorais”.
A Torre do Tombo disponibilizou igualmente um dos volumes do processo da apreensão da “Antologia de Poesia Erótica e Satírica”, organizada por Natália Correia e publicada pelas Edições Afrodite, em 1966, que levou a escritora a tribunal plenário.
Todos os documentos podem ser vistos pelos visitantes da exposição.
“Houve também uma dimensão muito importante que quisemos valorizar: desde 2015, o Museu do Aljube tem vindo a recolher testemunhos orais de muitas mulheres que tiveram um papel insubstituível na luta pela liberdade no nosso país e constituímos, a partir dessas 16 mulheres e seus testemunhos, um vídeo com excertos das suas partilhas e da sua experiência”, assinalou Rita Rato.
Então, o núcleo das “Novas Cartas”, que começa com a frase de Maria Velho da Costa e a foto das Três Marias, integra ainda um ponto de escuta, que replica uma sala dos anos 1970, onde as pessoas se podem sentar e ouvir a leitura de algumas das cartas, bem como consultar livremente o livro, explicou Joana Alves.
Uma outra parte da exposição tem os processos cedidos pela Torre do Tombo, que estão ao lado das primeiras edições da antologia poética de Natália Correia, da “Minha Senhora de Mim”, das “Novas Cartas Portuguesas” e também da primeira edição do livro de Maria Lamas, “As Mulheres do Meu País”, “que é uma das ‘Marias’ que vieram antes das Três Marias”.
“Depois há a parte da solidariedade internacional, que explica o impacto que esta teve no processo [judicial, contra as Três Marias], porque o próprio processo da PIDE sugeria que fossem absolvidas, por causa do impacto que estava a ter lá fora, e o que isso poderia significar para o regime de Marcelo Caetano”, disse Joana Alves.
O caso chegou às primeiras páginas de jornais como Le Monde e The Times, e a revistas como Newsweek e Le Nouvel Observateur, coincidindo, no verão de 1973, com a denúncia internacional do massacre de Wiriamu, no norte de Moçambique, pelo padre Adrian Hastings.
O núcleo da exposição termina com réplicas dos cartazes das manifestações de solidariedade internacional e com a absolvição.
Em paralelo — adianta Rita Rato — “temos o enquadramento das mulheres durante o regime fascista, do ponto de vista legal, o enquadramento com propaganda da mocidade portuguesa feminina, com alguns cartazes de como deve ser a mulher ideal, de como se constrói a ideologia em torno da opressão da mulher”.
Mais à frente, apresentam-se várias fotografias de mulheres que, apesar dessa “forte dimensão repressiva do regime”, ideológica, simbólica e física, “lutaram e conquistaram direitos muito importantes”.
“Depois terminamos no piso -1 com o vídeo dos testemunhos, que permite revelar uma experiência muito própria da resistência das mulheres: mulheres que foram estudantes, dirigentes académicas, jornalistas, médicas, mulheres que viveram na clandestinidade, mulheres que estiveram presas vários anos, com percursos diferentes”, descreveu a diretora do museu.
Até ao final do ano, será desenvolvida uma programação paralela, que começa já a 16 de maio, com “uma curta-metragem de um ‘work in progress’ de Luísa Sequeira, realizadora do Porto, que está a fazer um filme sobre as ‘Novas Cartas Portuguesas’, e também vai mostrar o filme que fez em 2015, que se chama ‘Quem é Bárbara Virgínia’, que é um filme sobre a primeira mulher que fez uma longa-metragem em Portugal, em 1945 [e que foi selecionada para o primeiro Festival de Cannes]”, explicou Joana Alves.
Haverá ainda conversas, momentos de leitura das “Novas Cartas” e uma série de outras atividades para um calendário que as curadoras estão ainda a fechar.