Ao longo dos últimos vinte anos, Alex Gibney tem produzido, escrito e realizado documentários sobre os Estados Unidos que abrangem uma miríade de temas, desde o ótimo registo que assinou sobre Hunter S. Thompson, “Gonzo: The Life and Work of Dr. Hunter S. Thompson” (2008), o maravilhoso mergulho ao universo da fraudulenta empresa de energia Enron, “Enron: The Smartest Guys in the Room” (2005), a oportuna visão sobre a vida de Elizabeth Holmes e a sua Theranus, em “The Inventor: Out for Blood in Silicon Valley” (2019), entre outros como “A Mentira de Armstrong” (2013), “Steve Jobs: The Man in the Machine” (2015) ou “Citizen K”, sobre o anti-Putin Mikhail Khodorkovsky (2019).

Um dos elementos comuns entre estas diferentes produções: Gibney procura a verdade, ou algo que o própria entenda como “uma verdade”, o esclarecimento que encontra por entre esquemas e mentiras, ingredientes fundamentais nas histórias que transforma em filme. A realidade por vezes parece ficção, mas é isso que também torna estes filmes tão interessantes. Como é o caso da crise dos opioides nos Estados Unidos, uma fatia importante da indústria farmacêutica e que, nas últimas três décadas, se transformou numa praga social e numa ameaça à saúde pública. O objeto de estudo do documentário “The Crime Of The Century”, que se estreia esta terça-feira, 11 de maio, na HBO Portugal, está dividido em duas partes de duas horas cada. Não nos é apresentado com a missão de dar uma notícia aos espectadores, o que se vê em “The Crime of the Century” não é a descoberta de um problema, mas nunca o tema tinha sido trabalhado e apresentado desta forma, nem tinha juntado tanta informação num mesmo suporte (incluindo alguns dados que podem eventualmente representar alguma mudança legal).

[o trailer de “The Crime of the Century”:]

São quatro horas pesadíssimas. Um trabalho magno de Alex Gibney, com a colaboração do jornal Washington Post, o resultado de um coletivo obreiro de investigação e de ligação de pontos. Dois episódios longos, com  muita informação, tanta informação e de tão difícil digestão que por vezes os temas parecem algo desconexos. Não estão. É um caso difícil de defender quando a própria expressão que se usa para dar título à questão pode acabar por atenuar o real problema – e a expressão já foi usada neste texto: “crise dos opioides”. Mas uma advertência no início do documentário alerta o espectador para isso: não é uma crise, é um crime. Estas quatro horas são Alex a apresentar o seu caso e de como foi enterrado durante décadas nos Estados Unidos.

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Os opioides podem ter efeito sobre vários problemas de saúde, mas representam, acima de tudo, o tratamento mais eficaz contra a dor severa e intensa. Derivativa do ópio, é uma droga que causa dependência e, com o tempo, geram tolerância num organismo habituado à substância — ou seja, ao longo do tempo é preciso aumentar a quantidade de opioides para que o mesmo efeito se manifeste, isto num corpo habituado à substância. A isto acrescem os efeitos secundários: por um lado, o risco cardíaco e respiratório que a sobredose de opioides pode representar, mais ainda se tomados em conjunto com alguns ansiolíticos, anti-depressivos, álcool, sedativos ou até anestésicos. Além disto, os opioides são consumidos à margem da prescrição médica por outro dos efeitos secundários: a euforia que pode causar no sistema nervoso.

Mas “The Crime of the Century” é sobre o problema que os opioides representam nos Estados Unidos, país onde a questão tomou proporções graves a partir da década de 1990 – nos últimos 20 anos morreram mais de 500 mil pessoas vítimas de overdose de opioides. Gibney começa esta história muito antes e personaliza-a, dando-lhe um rosto e um nome. Viaja no tempo para explicar a história e a influência da família Sackler em tudo isto, os responsáveis pela farmacêutica Purdue Pharma. O histórico da companhia na arte de conseguir um lugar de destaque na distribuição de fármacos na sociedade norte-americana através de métodos pouco ortodoxos e muito censuráveis (ilegais, até) é quase tão impressionante como a riqueza acumulada por uma família que, ao mesmo tempo, foi sabendo legitimar a sua posição social, através de práticas de mecenato e filantropia. Desde o início da década de 1990 que a Purdue Pharma virou a sua atenção para criar medicamentos para atenuar a dor. Em 1995, com a introdução no mercado do Oxycontin, tudo mudou. E também mudou a forma de se vender e prescrever medicamentos nos Estados Unidos.

[entrevista com Alex Gibney no “Daily Show” de Trevor Noah:]

O Oxycontin, a Purdue Pharma, a família Sackler são, portanto, um ponto de partida para um documentário que se vê menos como isso e, sim, como uma investigação (sobretudo a segunda parte). Para quem estiver mais distante do tema, a crise dos opioides e as respetivas consequências poderão chegar como um choque. A argumentação de Alex Gibney é feita de desespero, um último soco na mesa para alertar para uma situação que acontece à vista de todos. Porque o realizador, a investigação e o filme ultrapassam a venda de opioides e debruçam-se sobre as leis e a regulamentação que permitem — e por vezes facilitam — que a realidade apresentada aconteça.

A venda e distribuição destes fármacos é muitos mais fácil e comum do que seria de supor para uma substância quimicamente tão forte e perigosa e foi por isso que Alex Gibney procurou realizar o documentário com um tom relativamente sinistro. Não há contemplação face à situação, como acontece noutros trabalhos seus – como o da Enron ou o que conta a história de Elizabeth Holmes e da Theranos –, “The Crime of the Century” é um alerta, o trabalho mais alarmante da sua carreira. Por isso, soa a coisa muito pessoal em alguns momentos. Por vezes, é óbvio que foi feito com a emoção ao nível da razão. Os dados apresentados são muitos, são extensos, nem sempre a relação entre os vários pontos é imediata e fácil de acompanhar. Mas no meio da intrincada trama, as perguntas a que “The Crime of the Century” procura responder são sempre as mesmas: como é possível acreditar num país com leis e regulamentação que permitem que esta realidade aconteça? E porque é que se tratam os doentes, as vítimas, como se fossem os verdadeiros criminosos?