Os adeptos ingleses cantam, cantam e pedem para o futebol voltar a “casa”. “It’s coming home”, dizem aos berros, seja no estádio, nas ruas ou nas redes sociais. No entanto, há quem ache que a palavra “casa” talvez seja exagerada. Kasper Schmeichel, filho do lendário Peter e guarda-redes da Dinamarca, refutou o a génese do desejo britânico. Em conferência de imprensa, perguntaram a Kasper “O que significaria impedir o futebol de voltar a casa?”. “Mas já alguma vez esteve em casa? Não sei, alguma vez ganharam [o Euro]?”, respondeu entre risos, dizendo ainda que a única competição vencida pelos ingleses foi o Mundial de 1966 e não um Europeu.

E foi precisamente em 1966 a única vez que a Inglaterra ultrapassou uma meia-final de um Europeu ou Mundial em seis tentativas. As estatísticas, as histórias e as coincidências, como vamos ver mais à frente, fazem o jogo pender para os dois lados, mas é importante referir os que viram o jogo para o lado inglês. Os Three Lions não perdem há onze jogos e, numa senda histórica, ainda não sofreram golos na competição deste ano. Aliás, há sete encontros que Pickford, o titular das redes, não vai buscar a bola ao fundo da baliza.

E a vontade inglesa para ultrapassar tudo é tanta que até o príncipe Carlos, filho da rainha Isabel II, em conjunto com Camilla Parker-Bowles, duquesa da Cornualha, deixou um apoio oficial aos “seus” rapazes. E, mais uma vez, atenção ao hashtag “It’s coming home”…

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Do lado dinamarquês, os jogadores já escreveram um conto de fadas e levam para casa uma bonita história para contar. Acima de tudo, levam Christian Eriksen, depois daquele susto tremendo. Depois de um arranque tremido no Euro 2020, a Dinamarca foi andando e andando pelo torneio, chegando ao jogo de hoje. O objetivo? Conseguir uma surpresa épica, tal como em 1992. E se em 21 jogos entre Dinamarca e Inglaterra, os escandinavos apenas ganharam quatro e perderam doze vezes, alguns dados até sugeriam a tal surpresa antes do encontro. Ora veja-se:

– Em 1992 estava [Peter] Schmeichel na baliza. Em 2020 está também Schmeichel, mas Kasper, o filho.

– Também em 1992, o habitual número 10 dos dinamarqueses, Michael Laudrup, fez “birra” e apesar de o seu país ter sido repescado para o Euro (tinha falhado a qualificação), resolveu não ir. Ou seja, jogaram sem o maestro do costume. Este ano, infelizmente, também o número 10, Eriksen, está de fora. Coincidência número dois.

– Para a terceira coincidência temos mais concretamente cinco. Quer em 1992, quer em 2020, existiram e existem jogadores chamados Christensen, Christiansen, Jensen, Andersen e Poulsen.

E se os defesas ingleses que o selecionador Gareth Southgate tem colocado dentro de campo têm cumprido exemplarmente o seu papel, a ofensiva dinamarquesa tinha tudo para ser uma ameaça: dez golos nos últimos três jogos, nos quais somaram apenas vitórias. A Inglaterra partia como favorita, com a tal eficaz muralha atrás, as diagonais de Sterling e o reencontro de Kane com os golos, mas não há sonhos impossíveis no futebol. E, assim, Maehle na esquerda (que grande Europeu) ou o MVP Delaney no meio-campo, ajudado por Hojbjerg, Damsgaard ou Braithwaite, entre outros, prometiam fazer tudo para deixar em êxtase os cerca de 8.000 dinamarqueses presentes em Wembley.

As equipas entraram muito bem em campo, com Kjaer, capitão dinamarquês, a receber de Harry Kane uma camisola da Inglaterra com o número 10 e “Eriksen” escrito nas costas. Depois do momento, arrancou o jogo, com uma Inglaterra de pressão alta e centrais em cima do meio-campo, mas a criar pouco perigo. Por volta dos 20′ a Dinamarca como que equilibrou o jogo, aproveitando a falta de criatividade da frente inglesa, que contava com Kane muito recuado e Mount com pouca bola. Aos 30′, numa bola parada em boa posição, Damsgaard bate a bola com muita força e, mesmo sem grande colocação, Pickford não a conseguiu apanhar. Estava feito o primeiro golo (e que remate) sofrido pela Inglaterra em todo o Europeu.

Os ingleses precisavam de pegar no jogo e assim foi. Pelos 38′, Kane recuou ainda mais, para perto dos centrais, sem haver ninguém que pegasse no jogo. No entanto, foi do já típico recuou do ponta de lança inglês que sugiram duas boas combinações com Saka que terminaram em Sterling. À primeira, Schmeichel fez uma “mancha” do outro mundo. À segunda, Kjaer tentou cortar mas acabou por fazer o empate, o 11.º autogolo do Euro, e o jogo foi empatado para o intervalo.

“A nossa motivação é silenciar os adeptos ingleses, mas sabemos que vai ser muito difícil”, referiu Kasper Hjulmand, selecionador dinamarquês, antes do encontro. Mas mesmo a perder ou com o jogo empatado, os milhares e milhares de ingleses que “encheram” Wembley não se calaram. E os dinamarqueses? Também não. Que festa bonita teve o mítico estádio nas bancadas esta quarta-feira.

Os dinamarqueses tiveram certamente uma boa palestra nos balneários, porque entraram muito bem no segundo tempo, criando muitos problemas à Inglaterra, não só pelo que tentavam fazer ofensivamente, como também por terem decidido pressionar mais alto. Na sequência desta bela entrada em jogo, Dolberg teve uma boa chance, mas Pickford fez uma grande defesa.

A Inglaterra não estava bem, mas as bolas paradas são um perigo em qualquer lado. Aos 55′, Schmeichel com mais uma enorme intervenção negou o golo a Maguire. A partir daqui o jogo, como se fosse possível, ficou ainda mais intenso e “rasgado”, jogado a um ritmo impressionante de ambos os lados.

Os rapazes de ambas as equipas não deixaram de entregar-se a cada lance, cada passe, com uma alma impressionante. Mesmo assim, os ingleses tiveram mais posse, com a Dinamarca, que às tantas mudou de 3x4x3 para 3x5x2, a continuar a procura da rapidez. E nunca desarmaram da defesa agressiva. Nos últimos minutos, no entanto, os dinamarqueses estiveram encostados à sua área, limitando-se a bater na frente. A equipa escandinava sentiu a dimensão física do encontro. Christensen, que estava a fazer um bom Euro, e Delaney, talvez o melhor dos dinamarqueses durante a competição, saíram com problemas físicos. A Dinamarca sofreu até à última jogada (Harry Kane esteve perto), viu a bola a passar com perigo pela área e a chegar algumas vezes ao seu guarda-redes, mas conseguiu levar o jogo para prolongamento.

E o prolongamento não destoou em nada dos últimos minutos do tempo regulamentar. Aliás, a coisa apenas piorou para os dinamarqueses. Já sem alguns titulares e com os que restavam a quebrarem fisicamente, o sofrimento foi muito. Mas não foi só falha dinamarquesa. É de dar muito, mas muito valor à intensidade inglesa (e à condição física dos seus jogadores) que foram encostando e encostando o adversário à sua baliza. O golo acabou por aparecer sem surpresa, mas apenas na sequência de uma grande penalidade, após falta de Maehle sobre Sterling. Kane, da marca dos 11 metros, não marcou à primeira porque Kasper Schmeichel defendeu, mas na recarga fez o golo. Os últimos 15 minutos de jogo pouco acrescentaram, confirmando a vitória inglesa.

Pois bem, voltamos sempre à mesma questão: está o futebol a voltar para casa? É que os ingleses não param de ganhar jogos e os adeptos de cantar “It’s coming home”. É apenas a segunda vez (!) que os ingleses passam uma meia final. A última vez foi em 1966, quando venceram Eusébio e companhia, ganhando depois o “caneco”. O lugar da final repete-se, o Estádio de Wembley, mas desta vez contra a poderosa Itália. Temos final.

O jogo a três toques

Para recordar

O Europeu dos dinamarqueses arrancou com a quase tragédia de Christian Eriksen. A partir daí, os jogadores pareceram ganhar toda uma alma, toda a uma vontade de jogar pelo seu número 10 e melhor jogador, que começaram a escrever um autêntico conto de fadas. O último jogo foi na noite desta quarta-feira, mas não ficou nada por dar dentro de campo. Deixaram lá tudo o que tinham. Por Eriksen, por eles e pelo seu país. E pode ser injusto, mas é preciso recordar individualmente alguns jogadores. Delaney foi o MVP em campo, o mais evoluído e hoje apenas saiu quando o físico assim o obrigou. Maehle, lateral esquerdo de pé direito, mostrou-se como um excelente valor e Damsgaard foi irreverente e até apontou um grande golo esta noite. O “melhor”, provavelmente, foi Kasper Schmeichel. Esta quarta-feira, frente à Inglaterra, deu mais uma lição de como ser um grande guarda-redes, com enormes defesas. Até defendeu um penálti em que quase, quase agarrou a bola. Kane acabaria por fazer golo na recarga e acabar com o sonho dinamarquês. Mas a história já ninguém lhes rouba.

Para esquecer

Não há muita coisa negativa a tirar de um grande duelo entre ingleses e dinamarqueses. Mas a verdade é que houve mais um autogolo, que Kjaer vai querer esquecer certamente, pois deu o empate à Inglaterra. Num número um pouco estranho, são já onze os autogolos no Euro 2020. Pior, curiosamente, só a última grande competição, o Mundial de 2018, na Rússia.

Para valorizar

Enquanto os dinamarqueses eram substituídos com problemas físicos, os ingleses pareciam ter corrida para muito mais tempo. Pelo menos, para mais do que a equipa da Dinamarca, que quebrou claramente. A equipa de Gareth Southgate à falta de, aqui e ali, alguma criatividade na construção, conseguiu, muito embalada pelo seu público, manter uma pressão constante no adversário. Não é por acaso que vencem com justiça e vão à final do Europeu.