50 jogos e 140 golos depois, 11 cidades, 11 estádios e 11 países depois, um mês depois, o Euro 2020 chegava ao fim. Um Euro 2020 que de 2020 só teve mesmo o nome. O Campeonato da Europa que foi adiado devido a uma pandemia mundial, que chegou a estar risco um ano depois da data original, que teve menos uma cidade do que o originalmente programado e que deixou Bilbao e Dublin de fora para ter adeptos em todos os estádios. O Campeonato da Europa mais difícil de organizar, mais difícil de preparar e, em certa medida e depois de uma temporada para lá de exigente, mais difícil de disputar. Este domingo, o quase infindável Euro 2020 chegava ao fim.

Na final de Wembley, onde se disputaram também as meias-finais, Itália e Inglaterra decidiam quem ficava com o troféu. Uma decisão histórica, logo à partida, não só por se tratarem de duas equipas clássicas do futebol europeu mas também pelas dificuldades que ambas atravessaram em anos recentes. Itália não se qualificou para o Mundial da Rússia, nos dois anteriores não tinha passado da fase de grupos e no Euro 2016 não foi além dos oitavos de final; Inglaterra foi eliminada nos oitavos de final do Mundial 2010 e do Euro 2016 e no Mundial 2014 nem sequer passou da fase de grupos. Este domingo, os italianos procuravam o primeiro Europeu desde 1968 e o primeiro título desde o Mundial 2006, enquanto que os ingleses corriam atrás do primeiro troféu desde o Mundial 1966, há 55 anos.

De um lado, a equipa de Roberto Mancini. Esta Itália entrava para a final do Euro 2020 sem perder há 33 jogos consecutivos — a última derrota havia sido contra Portugal, em 2018, na Liga das Nações — e o empate no final do tempo regulamentar da meia-final com Espanha foi mesmo o fim de uma série de 13 vitórias seguidas dos azzurri. A seleção italiana precisou de se reinventar depois de falhar o apuramento para o Mundial da Rússia e fê-lo da melhor maneira com Mancini, o treinador certo para recuperar uma equipa com qualidade mas sem uma réstia de confiança. Em Wembley, procurava a coroação de uma geração liderada pela dupla Chiellini/Bonucci, com o talento de Insigne e Chiesa e o gigantesco momento de forma de Jorginho, que podia aliar o Europeu à Liga dos Campeões e tornar-se um candidato sério à Bola de Ouro.

Do outro lado, a equipa de Gareth Southgate. Esta Inglaterra também entrava para a final do Euro 2020 sem derrotas em 2021 — ou, colocado de outra forma, sem perder há 12 jogos e desde novembro do ano passado. Depois da enorme desilusão no Europeu de 1996 (onde foram eliminados em casa, na meia-final, graças a um penálti falhado de Southgate), os ingleses regressavam a uma final 55 anos depois e procuravam atingir uma glória que tem andado desaparecida durante décadas. Southgate, o selecionador que começou a revolucionar os Sub-21 para depois pegar na seleção A e aproveitar uma das melhores gerações da história de Inglaterra, corria o risco de se tornar um dos nomes mais importantes de sempre no futebol do país. E a vontade de Kane, Sterling, Maguire e companhia era levar o troféu para casa — como diz a música que acompanha a seleção inglesa sempre que entra em campo.

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Um fator, porém, não podia ser afastado. Inglaterra jogava em Wembley, em casa, com o apoio da esmagadora maioria das 60 mil pessoas que coloriam as bancadas. Na antecâmara da partida, já que os ajuntamentos perto do estádio começaram a surgir logo durante a manhã, dezenas de adeptos ingleses tentaram (e vários conseguiram) entrar no recinto sem bilhete, provocando várias intervenções concertadas das autoridades. A menos de uma hora do apito inicial, com a maioria dos adeptos italianos já nas bancadas, os ingleses iam provocando distúrbios e deixando as duas completamente imundas e cheias de garrafas e outros resíduos no chão.

O mais importante, contudo, acontecia em campo. Mancini repetia o onze da meia-final contra Espanha, com Verrati, Jorginho e Barella no meio-campo e Chiesa a titular, em conjunto com Immobile e Insigne, com Locatelli a começar no banco. Southgate, por outro lado, voltava aos três centrais (Walker, Maguire e Stones) e lançava Trippier na ala direita, com Saka a ser o sacrificado e Phil Foden a ficar de fora por lesão. À entrada do relvado de Wembley, uma placa indicava o lema que todos teriam de ter bem presente: “Onde entram jogadores e saem lendas”.

Italy v England - UEFA Euro 2020: Final

“Onde entram jogadores e saem lendas”. O lema à entrada do relvado de Wembley

O jogo começou praticamente um golo — que não deixou de demonstrar grande parte daquilo que acabaria por fazer a diferença na partida. Numa transição ofensiva muito veloz e logo depois de um pontapé de canto a favor de Itália, a bola passou por Mason Mount e Luke Shaw antes de chegar a Harry Kane, que a partir do meio-campo conseguiu abrir na direita com um passe longo; Trippier, já no interior da grande área, cruzou largo para o segundo poste e encontrou Shaw, que aproveitou o facto de Di Lorenzo estar a fechar no meio para rematar e abrir o marcador (2′). O lateral do Manchester United marcou quando o relógio registava um minuto e 56 segundos, naquele que se tornou de imediato o golo mais rápido da história em finais de Europeus e que foi também o primeiro de Shaw pela seleção.

Itália teve um livre direto de Insigne pouco depois, que passou ligeiramente por cima da baliza de Pickford (8′), mas foi preciso esperar muito para voltar a equipa de Roberto Mancini a ficar perto do empate. O sistema de cinco defesas de Inglaterra ia fazendo a diferença: Kyle Walker apagava Insigne por completo, Maguire procurava controlar Chiesa e o facto de Trippier e Shaw funcionarem como autênticos alas oferecia uma largura acima da média aos ingleses. No fundo, a estratégia de Gareth Southgate ia conseguindo fugir à pressão intensa que Itália aplica na faixa central, personificada em Immobile, Verrati e Barella, e ataca maioritariamente pelos corredores. Pelo meio, Harry Kane desequilibrava com um posicionamento muito móvel nos espaços interiores, recuando mais do que Sterling e Mason Mount para ir buscar jogo e servindo de autêntico isco para deixar os dois colegas de ataque mais soltos e livres de marcação.

Do outro lado, ainda que com muitas dificuldades, Chiesa ia sendo o único jogador italiano com capacidade para causar perigo. O médio da Juventus ficou perto de empatar num lance individual em que foi superior a Declan Rice no confronto físico e rematou forte à entrada da grande área, de pé esquerdo, com a bola a passar muito perto da baliza de Pickford (35′). Chiesa era mesmo o único que, a espaços, conseguia desequilibrar: Itália estava muito amarrada e não soube desenhar qualquer jogada coletiva que terminasse com uma finalização, esbarrando sempre na muralha inglesa sem demonstrar criatividade ou capacidade para encontrar espaços. Para isso, muito contribuíam Kalvin Phillips, que não permitia que Verrati fosse o primeiro elemento da construção adversária, e Declan Rice, que ia realizando outra exibição gigante no meio-campo.

Já perto do intervalo, Immobile ainda teve um lance perigoso, com um remate na grande área que foi intercetado por Stones depois de um cruzamento na direita (45+1′), mas Inglaterra foi mesmo para o balneário a 45 minutos de derrotar Itália e conquistar, finalmente, o Campeonato da Europa. Para isso, teria de continuar a defender de forma praticamente perfeita e procurar ser eficaz no ataque, para tentar acabar com o jogo; para o evitar, os italianos teriam de desmontar a defesa inglesa e encontrar espaços para desequilibrar.

A segunda parte arrancou sem qualquer alteração nas duas equipas mas esse fator durou pouco. Já depois de Insigne voltar a não conseguir acertar na baliza de livre direto (51′), Roberto Mancini tirou Immobile e Barella e lançou Berardi e Cristante. Pickford fez a primeira defesa pouco depois, na sequência de um remate de Insigne depois de um desequilíbrio de Chiesa (57′), e Itália ia intensificando a pressão. Inglaterra baixava as linhas, encurtava os espaços e compactava os setores, ciente de que qualquer erro poderia valer a decisiva vantagem conquistada logo nos instantes iniciais. Nesta altura, a pressão de Kane, Sterling e Mount já era mais passiva e os três elementos ingleses mais adiantados não tinham grandes problemas na hora de recuar para trás da linha do meio-campo.

Do outro lado, Chiesa continuava a ser o grande destaque. O jogador da Juventus era claramente o único inspirado no conjunto de Mancini e continuava a procurar espaços com a bola no pé, serpenteando entre os defesas para depois rematar forte de fora de área. Voltou a fazê-lo já depois da hora de jogo, com Pickford a evitar o empate com uma enorme defesa (62′), e Stones respondeu na outra baliza com um cabeceamento que passou ligeiramente por cima da trave na sequência de um canto (64′). O momento que os italianos procuravam, porém, acabou por chegar.

Canto batido na direita, há um primeiro desvio de Cristante ao primeiro poste, Verrati cabeceia ao segundo e Pickford defende em direção ao poste. Na recarga, depois de fugir a Declan Rice, Bonucci encosta para empatar a partida (67′) e torna-se o jogador mais velho a marcar na final de um Europeu, com 34 anos e 71 dias. Inglaterra sofria as consequências de ter prescindido de atacar, Itália colhia os frutos de ter passado a atuar somente no meio-campo adversário. Southgate reagiu ao golo sofrido com a entrada de Bukayo Saka para o lugar de Trippier e desmontou a linha de três centrais, com Kyle Walker a assumir a posição de lateral direito. Os italianos ficaram perto de completar a reviravolta através de Berardi, que atirou por cima depois de um grande passe longo de Bonucci (73′), e o selecionador inglês solidificou as mudanças na equipa ao trocar Henderson por Rice.

A pouco mais de dez minutos do fim, Itália acabou por sofrer um enorme contratempo — não só para o período que ainda restava mas também para o ainda eventual prolongamento. Chiesa, que estava a ser o melhor jogador da equipa desde os instantes iniciais, lesionou-se no tornozelo num duelo com Walker e teve de ser substituído por Bernardeschi depois de ainda tentar permanecer em campo. Nos últimos minutos, já pouco ou nada aconteceu: Inglaterra tentou atacar principalmente através de investidas rápidas e pelas alas, Itália teve sempre mais bola e mais discernimento e ainda viu Belotti render Insigne mas nenhum conseguiu evitar a meia-hora extra.

No prolongamento, a dinâmica equilibrou-se. Inglaterra conseguiu voltar a empurrar as linhas para a frente, passou a ocupar mais espaço no terreno e a escapar à tentação de recuar para ficar à espera do adversário. Mancini voltou a mexer e trocou Verrati por Locatelli, o médio do Sassuolo que fez um arranque de Europeu muito positivo, e Southgate respondeu com Grealish no lugar de Mount. A primeira parte do tempo adicional teve um único momento de maior perigo, quando Walker permitiu uma investida de Emerson na esquerda e Bernardeschi falhou o desvio por pouco, com Pickford a afastar com o ombro (103′). Ao fim de 15 minutos, o empate mantinha-se.

Na segunda parte do prolongamento, Bernardeschi atirou um livre direto com muita força mas Pickford segurou — ainda que só à segunda (107′). Stones ficou perto de marcar, ao falhar o desvio de cabeça depois de Donnarumma sair da baliza na sequência de um cruzamento de Kane na esquerda (108′), e ficava a ideia de que os últimos minutos de jogo corrido da final do Euro 2020 seriam bem disputados. Inglaterra ia beneficiando de algum ascendente principalmente graças à frescura e criatividade de Grealish, encostando Itália ao próprio meio-campo defensivo, e a equipa de Mancini tentava sair somente em situações de contra-ataque rápido. Nos últimos instantes e já a pensar nas grandes penalidades, Florenzi, Rashford e Sancho ainda entraram. Ao fim de 120 minutos e com um golo para cada lado, a final do Euro 2020 seria decidida na crueldade dos penáltis — o que também confirmava que Cristiano Ronaldo, com cinco golos, era mesmo o melhor marcador da competição.

Nas grandes penalidades, o drama foi extraordinário: Pickford começou por defender o remate de Belotti, Rashford atirou ao poste, Sancho permitiu a defesa de Donnarumma e Jorginho também viu o guarda-redes inglês evitar o golo. No primeiro penálti da segunda série, Donnarumma defendeu o pontapé do jovem Saka (um miúdo de 19 anos que teve de carregar o peso do mundo nos ombros) e deu o Campeonato da Europa a Itália, que não conquistava o troféu desde 1968. Mas se o guarda-redes italiano foi o herói das grandes penalidades, Bonucci foi o herói da final — o central da Juventus foi o líder moral da equipa, marcou o golo do empate, converteu o respetivo penálti de forma sublime e nunca deixou que o jogo lhe fugisse das mãos. Já com tudo decidido, na emoção da conquista, pegou numa câmara de televisão com as duas mãos e gritou “It’s coming to Rome!”. Afinal, o Europeu fugiu de casa e foi mesmo para Roma. Debaixo do braço de Bonucci.