Lá fora, o sol brilhava, vivia-se um pleno dia de verão e os termómetros subiam, já perto da hora de almoço. Lá dentro — dentro do hotel em que decorriam as jornadas parlamentares do CDS, em São João da Madeira –, a temperatura parecia descer abruptamente. A ocasião era a chegada do presidente do partido, Francisco Rodrigues dos Santos, para encerrar o evento dos deputados. Francisco chegou, desceu por uma escadaria, os deputados desceram pela outra e poucas palavras trocaram até todos entrarem na sala onde decorreu o encerramento, num ambiente fúnebre.
A frieza mútua não é de estranhar: Francisco Rodrigues dos Santos chegou a São João da Madeira, esta terça-feira, depois de um dia de jornadas — em que não esteve presente, apesar de andar perto de Aveiro — que culminou com uma espécie de reunião oficiosa do portismo: na noite de segunda-feira, coube ao convidado especial Nuno Melo, reunido com Telmo Correia, João Almeida e companhia, fazer um discurso em que arrasava de alto a baixo a direção do partido e o “novo” CDS, que “ainda estava nos bancos da escola” quando Melo já se dedicava a combater o socialismo.
Por isso mesmo, a expectativa para o discurso do líder e para uma eventual resposta a Melo era elevada. Mas Francisco não a quis dar: se as acusações sobre quem é que afinal potencia os problemas internos e cria problemas nas engrenagens do CDS são constantes, o líder preferiu dar a outra face e retirar a pressão da relação com os deputados — ou, pelo menos, apresentar-se acima das polémicas internas, que assim poderão ficar associadas às palavras de Melo e dos portistas.
Rodrigues dos Santos pareceu engolir em seco e fez questão de enterrar o assunto logo no arranque do discurso: a “única” reflexão que “cabe ao partido”, e o tema que o “convocou” às jornadas, é a vontade de colocar o CDS “na liderança da oposição ao PS”. Ficava assim garantido que não enveredaria pelo caminho dos ataques internos, como se percebeu, aliás, quando começou a nomear pelo discurso fora os deputados, um a um, recordando pastas em que se têm destacado.
A ideia foi, então, falar menos de dentro e mais para fora, com um exemplo claro: a inspiração de Isabel Ayuso, que venceu pelo PP na comunidade de Madrid com o lema “comunismo ou liberdade”. Rodrigues dos Santos dedicou-se a garantir que o CDS será o partido certo para importar o lema para Portugal — o lema de um partido de direita “sem timidez”, “pseudosimpatias” à esquerda e com uma proposta política “identificável”, definiu, traçando o guião para o que deverá ser o discurso do CDS durante os próximos meses.
O mote estava dado: “O socialismo compromete a nossa liberdade. É de liberdade que temos de falar este ano”. Seguiu-se a enumeração das razões pelos quais o lema de Ayuso, que tem alimentado as esperanças da direita tradicional, se aplica em território luso: porque o socialismo “afoga a classe média e as empresas em impostos”, porque o Governo quer pôr os alunos a seguir uma “cartilha ideológica” (nas aulas de Cidadania), porque o PS “quer controlar órgãos independentes”, porque “trata o Estado como se fosse a sua casa” ou “um banquete onde os boys vão comendo”, porque a “impunidade” grassa e tem em Eduardo Cabrita o seu maior exemplo. “Tudo o que se decide no país tem de estar na mão de meia dúzia de dirigentes do PS ou dos seus familiares”, atirou.
Com mais alguma demora nos ataques a Cabrita, que já tinha sido alvo nestas jornadas, o líder democrata-cristão seguiu para as críticas à carga fiscal, ao PRR (“um guião para a estagnação económica”) ou à nomeação de Vítor Fernandes para o Banco de Fomento (“é preciso perguntar a António Costa se mantém a nomeação”). O leque de críticas foi tão vasto que ainda incluiu as “medidas desadequadas” sobre a pandemia — “Está na hora de o Presidente da República talvez voltar a ouvir os partidos, para que a matriz de risco seja objetivamente corrigida e mais verdadeira”.
A ementa foi variada, mas o ponto era o mesmo: tudo isto é motivado pelo “socialismo” e é contra isso — e não contra si próprio — que o CDS se deve mobilizar. Por isso, Rodrigues dos Santos foi sempre pontuando cada exemplo que dava com medidas apresentadas pelos deputados no Parlamento e com palavras de ânimo: “O CDS vai ter mais autarcas eleitos”, prometeu. “O país precisa de uma direita forte. Sei que conto com o grupo parlamentar para esse objetivo”, repetiu por várias vezes.
Se o discurso foi conciliador, não conseguiu exatamente afastar os fantasmas de problemas internos na família desavinda dos democratas-cristãos: mal acabou o discurso, e depois de um aplauso em pé, Rodrigues dos Santos saiu rapidamente da sala e não se demorou a conversar com ninguém — nem com os jornalistas que o esperavam, nem com os deputados do seu grupo parlamentar.