Na conta de instagram de Inflo há exatamente nove fotografias, incluindo uma de Cleo Sol, outra de Michael Kiwanuka ou a contra-capa de Grey Area (disco da extraordinária Little Simz); quatro das fotografias são capas de discos dos Sault incluindo a de NINE, o quinto disco da banda, que só sai “lá por 1 de outubro de 2021”, segundo o bandcamp da banda. Nove fotografias – muito pouco para uma estrela.
Ou para alguém que podia, se quisesse, ser uma estrela. Inflo, crê-se, é o génio por trás dos Sault, embora isto não seja certo, tendo em conta que a banda (que pode muito bem não ser uma banda) não dá entrevistas. Mas ele e Cleo Sol são as únicas constantes nos créditos de composição dos cinco discos dos Sault, que – e isto é verdadeiramente espantoso – começaram a ser lançados a 5 de maio de 2009. A média, até este ano, estava em dois discos por ano, e não é certo que não surja mais um disco até final deste 2021.
Até porque este disco (NINE) vai desaparecer, quase tão depressa quanto os outros surgiram. De 5 de maio de 2009 até há pouco tempo, os discos dos Sault simplesmente apareceram nas plataformas de streaming sem qualquer anúncio, qualquer tipo de promoção, sem concertos, sem entrevistas. Mas a 14 de junho deste ano, as redes sociais dos Sault colocaram NINE em letras garrafais; dois dias depois surgiu uma mensagem que dizia “NINE irá existir apenas durante 99 dias”. A 25 de junho o disco ficou disponível para compra ou encomenda de vinil no bandcamp da banda. A 1 de outubro, quando os vinis começarem a ser enviados aos que compraram, o disco será retirado de todos os serviços de streaming e deixará de existir.
[ouça “NINE”, dos Sault, na íntegra através do Youtube:]
Isto pode soar a um ato de auto-sabotagem, à moda dos KLF, que um dia tornaram toda a sua música indisponível (embora lentamente ela tenha voltado a serviços de streaming); tem ecos daquilo que os Radiohead fizeram com In Rainbows, quando permitiram que os fãs descarregassem o disco a troco do que achassem por bem dar; mas não se pode dizer que seja um truque comercial, tendo em conta que a banda não vende muito, nem faz música que tenha hipótese de vender muito.
Economicamente, não faz sentido: antigamente, os discos que vendiam, vendiam acima de tudo durante um ou dois anos, porque as lojas tinham um espaço físico limitado e era preciso dar lugar a novos discos; os streamings, pagando pouquíssimos royalties, têm a vantagem de estar disponíveis a vida toda – e, segundo nos dizem sempre, são a melhor forma de um artista ter exposição de modo a poder agendar muitos concertos, onde poderão igualmente vender merchandising.
Concertos e merchandising, a ocasional colocação de uma canção num filme ou numa série, estas são as fontes de rendimentos dos músicos e, nos dias de hoje, é praticamente impossível alcançar isto sem a mencionada exposição nas plataformas de streaming. Mas a partir do momento em que não se dá concertos também não é necessário disponibilizar a música que se faz de acordo com as regras da indústria.
A impressão com que se fica é que os membros dos Sault não precisam do dinheiro dos discos para viver; e isto adiciona ainda mais mística ao enigma que já rodeia a banda, ou é uma espécie de declaração de intenções acerca da arte dos nossos dias: quando todos os artistas lutam por exposição, editam de dois em dois anos com digressões pré-marcadas, os Sault simplesmente aparecem quando querem ou disponibilizam um disco que se sabe de antemão que irá desaparecer. Sem entrevistas, sem concertos, promoção alguma.
Sault. Nunca os vimos, não precisamos: a música bastou-lhes para conquistarem 2020
Não que fosse fácil promover esta música – o que os Sault fazem é levar o passado para o presente, combinar soul e gospel e blues com eletrónica futurista, aqui e ali ajustada com o registo a que chamamos canção, outras vezes fugindo desse espartilho tornando-se mais atmosférica ou psicadélica. O mercado para isto, na era do r’n’b que empresas suecas criam a metro para divas, é quase inexistente.
Se Inflo estivesse para isso, esta música podia ser mais exposta: em 2017 ele ganhou um prémio Ivor Novello Award (distinções entregues pela Academia Britânica de Autores e Compositores) pela co-escrita de “Black Man in a White World”, canção de Michael Kiwanuka, com quem co-compôs, e que valeu a ambos o Mercury Prize de 2020. E nesse mesmo ano havia recebido novo Ivor Novello Award, desta feita para melhor álbum, pela sua escrita nesse espantoso disco que é Grey Area, de Little Simz, álbum no qual participava Cleo Sol, que é (aparentemente) a parceira de Inflo no caso Sault. Por sua vez, Little Simz surge no tema “9”, o que dá a todo o projeto um ar familiar, embora de uma família que não aprecie particularmente a exposição.
Mesmo que Inflo não seja um nome muito conhecido, o dos seus colaboradores é, em particular Michael Kiwanuka (e Little Simz e Cleo Sol idem, embora num grau menor). Qualquer relações públicas com uma agenda telefónica com meia dúzia de números conseguiria digressões cheias, capas de jornais e revistas, só com estas relações dentro da banda.
A sensação com que se fica é que quem quer que esteja por trás dos Sault quer que nos concentremos apenas na música – e ainda bem, porque: QUE MÚSICA. “London Gangs”, o segundo tema de NINE (logo após uma breve introdução), tem uma daquelas linhas de baixo pelas quais Inflo se tornou conhecido, enquanto ao redor do rapanço surgem coros, outras linhas melódicas, berros. Nenhum destes elementos individualmente é inovador, mas a conjugação – e o ritmo endiabrado – é simplesmente sumptuosa.
E como se de salto em altura se tratasse, a fasquia sobe logo a seguir com a majestosa “Trap life”, que abre com percussão maradíssima antes de ser inundada por vozes abafadas – e aguenta-se assim, num balanço profundamente africano, antes da eletrónica entrar e o rapanço dizer “Hello, hello, I’m a ghetto star”, num final absolutamente extraordinário e futurista.
Uma lista de elogios a NINE podia consistir apenas da enumeração das faixas que o compõem, tão alta é a bitola a que NINE se impõe – sem que por um segundo que seja se perca o elemento da surpresa. “Fear” começa com bateria e uma extraordinária linha de baixo, há uma frase inaudível repetida antes de se ouvir ‘the pain is real, the pain is, can’t fake this’, há ecos eletrónicos por todos os lados, uma guitarra vem com ruído no braço, várias vozes começam a repetir a mesma frase e não é certo se isto é um sonho ou um pesadelo, mas é um vício do qual não nos queremos libertar.
Mais à frente há duas faixas extraordinárias seguidas: “Bitter streets” tem algo de soul jazzy, com uma linha de baixo delicada e guitarrinha e coros; no fim, as cordas são um espanto, a lembrar as aventuras para lá da atmosfera dos Alpha; igualmente jazzy, “Alcohol” vem lenta e sedutora, com contra-baixo e arranjos de xilofone e coros – é um lamento pelo excesso do consumo de álcool (“Look what I’ve done”, canta-se) e seria quase uma canção convencional se o mesmo par de frases não se repetisse do princípio ao fim.
Podia, como disse, enumerar todas as canções do disco, sobre-adjetivando cada descrição à conta do entusiasmo (pela beleza melancólica de “9”, que a meio recorda os Broadcast em negro, pela comoção do piano e voz em “Light’s in your hands”, com que o disco fecha), ou fazer declarações polémicas (“Os Sault são tudo o que os Massive Attack quiseram ser, mas só conseguiram num single”), mas seria um exercício inútil: NINE é infinitamente superior a tudo o que eu tenha a dizer sobre ele.
NINE é o disco do ano (hoje), mas quando o ano acabar já não vai existir. Ouçam-no antes que desapareça.