É provavelmente uma das cartas mais duras que a UGT já terá enviado para um primeiro-ministro. A central sindical dirigida por Carlos Silva enviou esta quinta-feira para António Costa um relato amargo do que vê no país, no governo, na atitude para com o diálogo social e a concertação. E não poupa nas palavras contra a atitude de vários ministros.

Para começar, há – segundo a UGT, na carta a que o Observador teve acesso – uma atitude quase generalizada de “desconsideração” dos ministros pela concertação social, com governantes a reduzirem os encontros entre as partes a “meros momentos de informação” aos sindicatos, sem qualquer disponibilidade para chegar a consensos.

“Vários responsáveis da sua equipa governativa não parecem compreender o desígnio do tripartismo e das virtudes da negociação coletiva. Estes não se esgotam nas conversas formais e informais das reuniões que se realizam ao longo do ano com os sindicatos da Administração Pública, mas sem quaisquer consequências para a vida das pessoas que estes representam. E não podem reduzir-se a meros momentos de informação aos sindicatos, sem que exista uma efetiva disponibilidade e abertura do governo para alcançar consensos”, escreve a UGT na carta, datada desta quinta-feira.

A ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública, Alexandra Leitão, durante a sua audição na Comissão de Administração Pública, Modernização Administrativa, Descentralização e Poder Local, na sequência de requerimento apresentado pelo grupo parlamentar do PCP, sobre atropelos aos direitos dos trabalhadores de empresas contratadas pelo Estado para a prestação de serviços, na Assembleia da República, 07 de julho de 2021. JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA

A ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública, Alexandra Leitão.

Esta “atitude de vários governantes, diz a central sindical, “desprestigia o diálogo social e qualquer tentativa do movimento sindical de atingir os seus objetivos”. “Tal desconsideração afeta a dedicação e a motivação de quem trabalha para auferir, no final do mês, um salário justo e a valorização do seu esforço”.

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Críticas na Educação, Saúde e Justiça. E a Pedro Nuno Santos com a gestão da TAP

E depois passa a exemplos. “O setor da Educação é dos que mais se sente violentado com a ausência de uma negociação séria entre o titular da pasta [Tiago Brandão Rodrigues] e os sindicatos” da UGT. Mas não é caso único, insiste.

“Pese embora o papel relevante da atuação da senhora ministra da Saúde [Marta Temido] durante a crise pandémica, tal não justifica por si só que os sindicatos calem as suas legítimas reivindicações, o mesmo se passando na Justiça, ou na Administração Pública (latu sensu)”.

, na Assembleia da República, em Lisboa, 07 de julho de 2021. ANTÓNIO COTRIM/LUSA

A ministra da Saúde, Marta Temido, durante a sua audição perante a Comissão de Saúde, no início do mês.

E se os ministros não têm respeito pelos parceiros sociais, pelos trabalhadores ou pelos sindicatos, considera a UGT, é porque o exemplo vem de cima. “O exemplo vem sempre de quem está no topo da governação do Estado. E o setor privado copia sempre o que de pior o Estado exemplifica”, assinala a central sindical.

Próximo alvo: Pedro Nuno Santos. Ao ver o que se passa na TAP, como é que a UGT pode negociar com as empresas privadas ainda mais poderosas, como no setor das comunicações ou na banca?

Ao assistirmos à forma como a TAP está a ser gerida, com destruição de postos de trabalho, mesmo depois de um acordo com os sindicatos para a redução de salários, será de acreditar que o movimento sindical consegue verdadeiramente negociar com a PT/Altice, os CTT ou, de forma particular – por ser o pior exemplo de que há memória nas duas últimas décadas – com a banca nacional?”, sublinha a UGT.

O ministro das Infraestruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, durante a sua audição perante a Comissão de Economia, Inovação, Obras Públicas e Habitação, na Assembleia da República, em Lisboa, 20 de julho de 2021. ANTÓNIO COTRIM/LUSA

O rosto do Governo ao longo dos meses de graves problemas na TAP: Pedro Nuno Santos, ministro das Infraestruturas.

Corrupção, branqueamento de capitais e impunidade. “Tudo é permitido aos poderosos”

A juntar a tudo isto, um quadro negro de impunidade no país, que contrasta com a visão mais dourada deixada pelo primeiro-ministro no recente debate do Estado da Nação. “Tudo isto [surge] aliado a um conjunto de situações de corrupção, desvio de fundos, branqueamentos de capitais etc”. Esta poderia ser uma referência aos casos recentes de Luís Filipe Vieira ou Joe Berardo. Mas a referência seguinte aponta mais para casos como o de Ricardo Salgado ou de José Sócrates, uma vez que a UGT diz que estes casos “parecem conduzir o nosso país para um clima de impunidade, onde tudo é permitido aos fortes e poderosos”.

Resta, assim, “aos mais frágeis, àqueles que são dependentes dos seus salários e dos seus vínculos sócio-profissionais, observarem todo este panorama com desânimo e incredulidade”.

Com a “negociação coletiva emperrada”, o que faz o Governo? Segundo a UGT, usa a legislação laboral para negociar com os seus parceiros mais poderosos à esquerda, o PCP e o Bloco de Esquerda.

“A legislação laboral segue ao sabor da onda político-partidária em plena Assembleia da República, como contrapartida de fazer aprovar Orçamentos do Estado, num jogo de luzes e sombras a que os sindicatos são alheios”.

Depois da exposição do problema surge o aviso: ou as coisas mudam, ou a UGT fará tremer “a paz social”. Como? “O Governo tem de cumprir as regras do diálogo social e respeitar os sindicatos da UGT. Sem a participação da UGT não há acordos de concertação social no nosso país, porque este é um esteio fundamental para a garantia sustentada da paz social, não apenas em Portugal, mas em qualquer democracia”.

Fundos Europeus? “Os abutres já rondam o pote”

Nem os fundos europeus – e aquilo que se prevê para a gestão da maior verba alguma vez atribuida a Portugal no próximo quadro plurianual – escapam aos alertas da UGT. Mas não sem antes haver uma nova bicada aos escândalos da banca.

“Não podemos calar a nossa angústia e revolta com o que se está a passar no nosso país. Se querem alterar a legislação laboral, penalizem quem se aproveita da lei para despedir, depois de ter recebido apoios do Estado de terem sido todos os portugueses a absorver (…) os custos da gestão danosa de muitos banqueiros e gestores”.

E agora, sim, os fundos, com alguns conselhos à mistura e um reparo que evoca a frase do primeiro-ministro, António Costa, à presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, quando veio a Lisboa certificar que o Plano de Recuperação e Resiliência português estava aprovado: “Já posso ir ao banco?”.

The President of the European Commission, Ursula von der Leyen (L) during the press conference with portuguese Prime Minister António Costa (R), after their meeting on the Pavilion of Knowledge in Lisbon, 16th june 2021. TIAGO PETINGA/LUSA

“Já posso ir ao banco?”, perguntou António Costa a Von der Leyen quando a presidente da Comissão Europeia disse que o PRR português já estava aprovado, em junho último.

“Retomem os valores das indemnizações por despedimento, pré-troika, e imponham limites ao setor privado nos despedimentos e rescisões, num período difícil do nosso país, em que a retoma económica vai ser lenta, e em que os abutres já rondam o pote dos fundos europeus, tal a ganância e avidez que se faz sentir quando se fala em dinheiro da Europa”, escreveu a UGT a Costa.