Enviado especial do Observador, em Tóquio

– Os adversários devem estar todos assustados…
– Achas?

No final da qualificação, antes da despedida de Nelson Évora dos Jogos Olímpicos e daquelas declarações que criaram grande burburinho em Portugal, Pedro Pablo Pichardo pediu para falar só de forma rápida na zona mista para ir descansar. Aos jornalistas cubanos, quando passou por eles, nada; aos portugueses, menos de três minutos e uma curta análise daquilo que tinha sido o apuramento convincente para a prova final.

“Fácil? Parece fácil, parece… [risos] Parece só fácil mas são muitos anos de trabalho, um ciclo olímpico inteiro só a preparar o dia de qualificação e a final. Por isso é que as pessoas acham que é fácil mas são muitos anos de trabalho, do meu corpo e da cabeça também. Mas sim, foi tranquilo. No primeiro salto relaxei demasiado, o meu pai chamou-me a atenção e no segundo tinha de sair bem. Se neste momento sou imbatível? Não, não, não, nunca se pode falar assim… Acho que todos os que estão cá estão bem preparados para ganhar uma medalha, estamos todos em boa forma física mas sei que salto mais”, resumiu sobre o 17,71.

Mas até onde podia voar Pichardo (ou Pedro Pablo Picardo Peralta, como começou por ser apresentado nesta final)? “18 metros? Na minha cabeça até tenho um bocado mais. Nas pernas? Também. 18 e um bocado mais, na minha cabeça está 18 e um bocado mais…”. Não faltava confiança. Nem ele nem aos jornalistas, como os espanhóis que chegaram a comparar o papel de Pichardo com Yulimar Rojas no triplo feminino, partindo do pressuposto que o ouro estava entregue e que o os outros disputariam as restantes medalhas.

As câmaras não largavam Pichardo (e Ryan Crouser, que entretanto começara também a final do lançamento do peso) e a primeira ronda deu razão à opção da produção: sem grande esforço, com um salto ainda longe da tábua e tecnicamente longe do que queria, como se percebeu também pela reação que teve quando saiu da caixa e olhou para as bancadas, o luso-cubano fez 17,61 e passou para a frente do concurso, à frente de uma surpresa vinda da Argélia chamada Yasser Mohamed Triki (17,30) e Will Claye (17,19). Nem o americano nem o burquinense Hugues Fabrice Zango (15,91) ameaçaram Pichardo na luta pela liderança.

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Na segunda tentativa, o atleta do Benfica voltou a repetir de forma improvável 17,61. De regresso ao seu lugar, limpava a areia das pernas com uma toalha branca e continuava com uma cara mais fechada, à procura de uma inspiração que lhe desse as asas que sabia ter nas pernas. A concorrência também não estava a puxar muito e aquela ooooooohhhhhhh que se ouvia por parte da speaker que ia acompanhando as várias provas ao mesmo tempo no Estádio Olímpico era apenas para marcas na final do peso e do lançamento do dardo. Só havia mesmo uma surpresa no triplo, o argelino Triki, que bateu o recorde nacional e passou o chinês Yaming Zhu deixando uma enorme margem na chamada à tábua que lhe permitia sonhar com mais (17,42).

Apesar de estar numa zona quase oposta à bancada de imprensa no Estádio Olímpico, as câmaras davam a ajuda necessária para acompanhar o que fazia Pichardo na paragem. Levantou-se, falou com o pai, acenou com a cabeça dizendo que sabia o que tinha de corrigir, sentou-se, rezou, voltou a colocar-se de pé para ir aquecendo as pernas (se é que precisava porque a final foi disputada em modo de quase 40º à sombra), foi ensaiando a corrida antes da chamada. Concentrado, focado, rosto fechado. Foram estas rotinas, foram estes pormenores que colocaram o luso-cubano a jeito para voar. E voou. Voou para onde tinha de voar, voou para onde ainda achava que era pouco voar. O recorde nacional já estava batido a meio do concurso.

Com uma boa chamada a 4,6 centímetros da plasticina, Pichardo saltou 17,98, passando por seis centímetros a antiga melhor marca. Na bancada, Caterine Ibarguen, colombiana que foi campeã olímpica no triplo no Rio de Janeiro (desta vez nem passou do terceiro salto) e que treina com o pai do atleta em Portugal, saltava de alegria; cá em baixo, Will Claye, um dos adversários mais diretos, dizia apenas Damn! Parecia que as coisas estavam resolvidas, até porque o cubano Cristian Nápoles nem passou do corte (16,63), até Zango melhorar a sua marca para 17,47 que dava o segundo lugar. Estava longe mas era um balão de confiança.

O burquinense fez um salto nulo de seguida, o americano continuou a ser uma sombra daquele atleta que ia conseguindo rivalizar dentro do possível com o ausente Christian Taylor, o luso-cubano tinha as portas mais do que abertas para lutar apenas contra si nem tanto por uma medalha que parecia certa mas pela passagem da barreira dos 18 metros. A quarta tentativa acabou por trazer um salto nulo, ficando a olhar para o pai e a apontar para o tornozelo direito que parecia ter uma ferida explicada com uma passagem de raspão de um bico das sapatilhas por aquela zona (algo que acontecera também a Patrícia Mamona na final). Ainda assim, todas as atenções continuavam centradas em si. Não pela fita branca na cabeça e brincos nas orelhas, não pelos ténis de cores diferentes, não pelo relógio no pulso esquerdo. Estava ali o novo campeão olímpico.

Há coisas que não se explicam que são mesmo assim. Na primeira grande prova por Portugal, nos Mundiais de Doha em 2019, Pichardo fez o seu melhor registo do ano a 17,62 mas ficou a quatro centímetros do bronze de Zango numa prova ganha por Christian Taylor a 17,92. Mais recentemente, em 2021, nos Europeus de Pista Coberta, fez um primeiro salto apenas a 17,30 e foi suficiente para conquistar o ouro a Alexis Copello (17,04) – e por isso ficou insatisfeito, porque queria mais. E para o que dava 17,98 nas últimas edições dos Jogos? Ouro em 2016, ouro em 2012, ouro em 2008 (que foi ganho por Nelson Évora), ouro em 2004, ouro em 2000. É preciso recuar a Atlanta, onde Kenny Harrison fez 18,09, para se ver um vencedor melhor.

Por causa do problema que levou ao nulo no quarto salto, Pichardo foi à mesa prescindir do quinto. Quando Will Claye não conseguiu melhorar o 17,44, ficando assim fora do pódio, o luso-cubano tinha uma medalha já garantida e Portugal batera o recorde de pódios numa só edição dos Jogos. Quando Hugues Fabrice Zango não conseguiu melhorar o 17,47 e ficou com o bronze, tinha a prata assegurada. Era quase uma contagem decrescente para uma festa antecipada pelo quinto ouro olímpico de Portugal, segundo consecutivo no triplo salto depois de Carlos Lopes (1984), Rosa Mota (1988), Fernanda Ribeiro (1996) e Nelson Évora (2008). Tudo ficou confirmado quando Yaming Zhu fez nulo, ficou com a prata com 17,57 e tudo estava resolvido.

A superioridade de Pichardo foi tanta que o primeiro salto a 17,61 dava para ganhar a final do triplo salto. O atleta queria mais. Sem pressão, com tudo a ganhar, queria mais. Arriscou passar os 18 metros mas o salto foi nulo, ganhando ainda assim com mais 40 centímetros de vantagem. Pichardo não ganhou, esmagou. E ouviu-se o Paz Pás (Funaná), dos Némanus, como música de Portugal para a conquista da medalha de ouro.