Ao fim de três canções, Caetano Veloso falava com o público. Antes, mesmo sem deixar o palco, já tinha desfilado no meio de todos os presentes, através das suas canções, naturalmente, perante um Coliseu dos Recreios cheio. Claro que este “cheio” existe na medida das possibilidade que as atuais normas. da existência permitem, mas sim, estava cheio. E assim vai continuar nas próximas noites.
Entre estas canções estava “Menino do Rio”, o primeiro de muitos momentos onde o público se solta, deixa aquele pequeno desconforto de não estar mascarado por um multidão em todos os ângulos e se permite cantar em simultâneo com Caetano. Este, quando fala, fala para agradecer e para pedir desculpa; desculpa por as suas mãos estarem a tremer e a não estar a tocar tão bem quanto desejaria – nem se notava. Culpa a idade – 79 anos – e a viagem do dia anterior, vindo de Bruxelas, depois de ter passado por Hamburgo e Paris para apresentar este “Voz e Violão”. Pouco depois de mencionar os sítios por onde passou, menciona – e aqui parafraseamos – “mas hoje estou chegando em casa”. “A casa” pela relação com Portugal; “a casa” pela quantidade de brasileiros na plateia; “a casa” por causa das canções e o eco que recebe quando estas chegam ao público e voltam ao palco.
Ouviu-se “Fora Bolsonaro” a dado momento (lá para o fim). Caetano fingiu-se indiferente, não por ignorar, mas por haver qualquer coisa de Voldemortiano ao enunciar o nome do presidente brasileiro. Mas ouviu-se, como qualquer coisa que era preciso de dizer, pelo que se passa, por tanto tempo em que não se pôde ir para as ruas e não se pôde ir para concertos. É Caetano a dado momento que o diz, também no discurso inicial, que não tocava assim para as pessoas há dois anos. E que isso também causava um nervosinho (e daí as mãos também poderem estar a tremer). Ele, que aos 79 anos se adaptou aos tempos, e está agora gravar um álbum à distância com outros músicos, o sucessor de Abraçaço, de 2012. Pedimos desculpa: do enorme Abraçaço de 2012, que se mantém sem ano nem prazo de validade. Vício, aliás, que costuma acompanhar este escultor da canção brasileira viajada pelo mundo.
O início do primeiro de vários concertos em Portugal nestes primeiros dias de setembro (2, 3 e 11 no Coliseu de Lisboa, 4, 7 e 8 no Coliseu do Porto e dia 5 no Teatro Municipal da Guarda) estava marcado para as 20h30. Mas às 20h10 à porta do Coliseu era visível que seria impossível começar a horas. A fila para entrar ia até ao Solar dos Presuntos (não é publicidade, é Lisboa) e, embora escorresse com uma rapidez agradável, as pessoas atrás acumulavam-se e era mesmo claro de que nem toda a gente estaria lá dentro a horas. Normal. Tempos difíceis estes. Caetano chegou ao palco sensivelmente às 20h40, ainda algumas cadeiras por encher – quem faltava foi chegando em silêncio, entre as músicas seguintes, respeito, minha gente, respeito. Quase toda a gente se levantou para o receber, num misto de adoração pelo músico (mais do que isso, pelo amigo, de alguma forma) e de incredulidade por estarmos todos ali, juntos. Confessemos com toda a nossa emoção barata: é muito bonito isto de voltar ao mundo.
No palco, Caetano – voz – e o violão. Canções em pleno, num formato que o senhor Veloso gosta de tocar e cuja simplicidade se apresentou como anfitrião ideal para este reencontro. A falta de roupa nas canções aproximava-nos todos delas, enrolava-nos no calor da voz e nos detalhes tão simples como complexos melodias que ecoavam para lá do seu término. Ao segundo tema, “Menino do Rio”, o público estava finalmente solto. No primeiro instante de vários outros momentos, como “Sampa”, “Você é Linda” ou “Qualquer Coisa”, o público aderia, cantava, matava saudades de estar na mesma sala com Caetano Veloso. Levemos isto ao patamar seguinte: o público confessava, mesmo sem falar, que se pudesse fazia muito mais. Trocava os tais abraçaços com desconhecidos, um chorinho aqui, um beijo acolá, os copos possíveis, todos os copos. Um dia isto chega lá. Enquanto não chega, Caetano será sempre o melhor dos mundos.
Ainda fomos brindados pela sua versão a capella de “Tonada de Luna Llena”, do venezuelano Simón Díaz, ou “Confesso”, de Amália Rodrigues, um tema que não resiste a tocar em Portugal, em versão baiana. O amigo Veloso não resistiu, as gentes não resistiram a dançar. Nas cadeiras, sim, mas dançar é quando se quiser. Ao fim de hora e meia, levanta-se e sai, tudo para poder voltar e entregar um encore. Mais três canções, que terminam com “A Luz de Tieta”. O que aconteceu? Vocês sabem: toda a gente de pé a cantar, a bater palmas, a acompanhar os versos, o refrão e a saída de Caetano. Saem depois todos os que estavam na plateia, ordeiramente como se espera. Há um casal abraçado a chorar. Parecem coisas pequenas, mas não são. São grandes. Como Caetano, só com voz e violão.