Foi editado originalmente há 30 anos, a 27 de agosto de 1991, ano que vale a pena recordar por muitas razões musicais, neste caso a propósito do grunge, um rótulo carimbado em muitas bandas e discos do noroeste americano que depois se transformou em moda e influenciou toda a cultura popular, da roupa que vestimos aos filmes que vimos.

Ten, o primeiro álbum dos Pearl Jam, revelou a banda, alimentou o movimento com epicentro em Seattle e fez o que também faria Nevermind, dos Nirvana (provavelmente com menos impacto que este, mas com o mesmo sentimento), um mês depois: tornou-se banda sonora de uma geração que até então não tinha companhia musical para as dores de crescimento que sempre existiram, mas que na altura pareciam não ser cantadas, pelo menos não daquela forma: dramática, assertiva, distorcida mas harmoniosa ao mesmo tempo.

Com o tempo, o disco transformou-se em clássico, mais ainda porque os Pearl Jam acabaram por ser os únicos daquela classe de 91 mais mediática a chegar aos nossos dias, a manter-se nos palcos e nos estúdios. Este relato não é crítico nem académico. Longe disso, é um exercício de memória, que procura mostrar, na primeira pessoa, como um conjunto de 11 canções podem tornar-se coisa própria de quem as ouve, para não mais se perderem. Ou a sorte de quem encontra o disco certo na hora certa.

“Once upon a time”

Once

Pode ser a primeira frase de mais uma história inspiradora dos irmãos Grimm ou de uma fábula pedagógica de La Fontaine, mas também é o princípio da banda sonora de (pelo menos) certa fase de umas quantas (muitas) vidas.

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Onde estavas no 25 de abril de 1974? O que estavas a fazer no 11 de setembro de 2001? O que mudou a 27 de agosto de 1991? A última data parece a menos óbvia e, contudo, foi igualmente marcante em toda a minha adolescência. Na minha e na dos muitos que cresceram com aquela sensação reconfortante de finalmente alguém compreender as dores de alma e a raiva contra tudo o que faltava mudar no mundo.

Podíamos ouvir pop, euro pop, classic rock, glam rock, metal, punk e a lista de registos e subgrupos parecia continuar eternamente. E, contudo, faltava algo. Falta sempre, dirão. O grunge foi sempre algo mais, algo que unia Alice in Chains, Nirvana, Pearl Jam, Temple of the Dog, Soundgarden,Mudhoney, Mother Love Bone, mais do que separava. A imprensa da época ainda tentou construir a mesma polémica entre os Nirvana e os Pearl Jam que os Blur e os Oasis viveram anos mais tarde, só que isso não interessava nada. E nada interessava porque só queríamos partilhar as nossas cassetes com amigos e amores. Eram os tempos da música um pouco mais portátil do que antes e tudo o que vivíamos tinha uma banda sonora constante. O meu walkman saltava de banda em banda no mesmo ritmo desenfreado de quem corria pelas Escadinhas do Duque para apanhar o último comboio. Era assim em meados da década de 1990, é assim hoje.

“Thoughts arrive like butterflies”

Even Flow

O telefone de casa tocava todos os dias depois do jantar. Eu puxava o longo fio até ao meu quarto e atendia. Era o Ricardo, era sempre o Ricardo. Tínhamos passado o dia a conversar na escola e tínhamos seguido para a casa de um de nós depois. Era sempre assim. Uma noite como outra qualquer, ele ligou-me para falar de uma rapariga de quem ele gostava. Já tinham trocado números de telefone, ela morava perto e era “muito gira”. Também falámos da professora de Educação Visual que não sabia quem era o Miró. Depois, contei-lhe que tinha um livro novo que estava a adorar e ele respondeu-me com uma frase da irmã, mais velha: estava na hora de ouvirmos um disco com muita atenção.

“I’m still alive, yeah”

Alive

Os tempos que se seguiram foram passados ao som de Ten. Claro que ouvia outros álbuns, outras bandas, mas este foi sempre especial. De casa até à escola dava para ouvir uma canção; de casa à estação de comboio podia ouvir duas; no trajeto até à Carbono da Amadora cabiam três faixas; a viagem até ao Rossio dava para umas quatro; as manhãs de sábado guardadas para a Feira da Ladra permitiam-me ouvir todo o álbum. O calendário passou a ser medido pelas letras e melodias daqueles cinco. Mais do que isso, eles percebiam tudo o que eu estava a sentir e a viver. Nos auscultadores, na aparelhagem de casa – quando os pais estavam fora –  ou na guitarra de um amigo, havia sempre o verso certo para um incompreendido finalmente integrado.

“Why go home?”

Why Go

O último a sair não é um anacronismo sobre um programa de televisão ou um exemplo de cavalheirismo ao passar numa porta. O último a sair é uma forma de estar na vida. Bebe mais um copo, conversa mais um pouco, arrasta os velhos planos até serem novos. Ser adolescente é sentir que o tempo é demasiado curto para ser desperdiçado, é uma ânsia de ir a tudo e não dizer “hoje não vai dar”. Da casa do Tiago às arcadas, do jardim do Zeca à sexta-feira até ser sábado, jantares, concertos, exposições, pessoas e mais pessoas. Descobrir rima com viver e casa é um conceito estranho e demasiado fechado. Catorze, quinze, dezasseis, dezassete, dezoito anos, não há conta que se faça aos dias suspensos sem ir a casa. Viver era ser aquele solo de guitarra, a bateria desenfreada e gritar até perder a voz.

“I know someday you’ll have a beautiful life”

Black

Se todas as cartas de amor são ridículas, escrevam-se canções de amor. E de desamor. Porque a adolescência é feita de casais desencontrados, de amores desfeitos, de paixões à espera de acontecer. “Black” será sempre aquela canção especial, a primeira relação, o amor sem fim que afinal acabou, o choro envergonhado. Ao som desta escrevi poemas, textos, crónicas, cartas de despedida e muitas páginas no balanço do comboio. Era obrigatória nas mix tapes, agora arranja sempre lugar nas playlists. Era especial porque era de quem a ouvia. Parece pouco, mas nem sempre é preciso muito.

“Jeremy spoke in class today”

Jeremy

Ninguém esperava nada do Bruno. A vida não fora feliz com o Bruno. Era do bairro e o bairro esperava pouco dele. O Bruno não fora feito para estudar e, por isso, quando o Bruno falou na aula de História ficámos todos surpreendidos. A história do Bruno já estava escrita desde que ele nasceu e a minha história mudou quando percebi as histórias dos Brunos. Com Ten — e eu duvido que o Bruno alguma vez tenha ouvido Pearl Jam –, redescobri a música politizada, mesmo que não pareça. Cantar a pobreza, o desemprego, as relações falhadas, a herança de uma família disfuncional, e, contudo, sentir uma enorme vontade de viver. O Bruno falou na aula e eu sorri. Eu era uma canção dos Pearl Jam.

“The currents will shift”

Oceans

O Rubros fechou, o Rookie encerrou, o Tacão fechou portas. O Bairro Alto foi mudando e fomos perdendo referências. Algumas amizades esmoreceram, outras surgiram, mas deixámos de ter por garantido aquilo que julgávamos certo para sempre. O liceu tornou-se um local estranho e pouco frequentado. A música mudou, surgindo o trip hop, o rap e o que mais houvesse. O grunge foi perdendo a força e a flanela ocupava cada vez menos espaço nos armários. A passagem inevitável do tempo deixou-me sempre melancólico e começava a ser difícil manter a ligação ao passado que eu não queria abandonar.

“What the fuck is this world running to?”

Porch

“Parabéns, entraste na Universidade.” Estás a fazer o percurso todo certinho. És tudo aquilo que esperam de ti. És apenas mais um no rebanho e isso sempre teve um lado de susto. A faculdade representou a rutura completa com aqueles anos loucos do liceu, com as incertezas da adolescência, com a namorada eterna. Os dias fazem-se de teoria nas salas de aula e no aquário do ISCTE, as noites são um cocktail de práxis embebida em cerveja no Esteves. Vivo anos em que a raiva torna-se irreverência, as leituras politizam-se e redescubro Pearl Jam enquanto agentes culturais que fogem ao discurso vazio e tomam posições contra o aborto, a guerra, o liberalismo, a segregação. O mundo de 2001 é um lugar estranho e voltar a Ten era regressar a algumas certezas.

“After all is done”

Garden

Qual é o próximo passo? Licenciatura, pós-graduação, mestrado e o receio de ser gente grande. Somos eternos Peter Pan a adiar o que não pode ser adiado. Até que a vida nos agarra por um braço e nada do que aprendemos nas canções de Ten parece servir de ajuda — o booklet está perdido num canto da casa. De estágio em estágio, vamos ganhando barriga e os primeiros cabelos brancos aparecem discretos. Aprendemos o que é o subprime, o desemprego de longa duração e a portugalidade que existe em levar bacalhau para a nova casa depois do Natal passado em família. Ser jovem em 2011 – 20 anos depois de Ten – era esperar por um fado melhor enquanto se tirava o disco da prateleira. As respostas estiveram sempre lá, só precisávamos de aprender a perguntar.

“He just ain’t nothin’”

Deep

Os anos passam e a idade começa a pesar, as dúvidas sobre o futuro acumulam-se e a esperança de conseguir mudar o mundo não passa de um verso perdido num daqueles cadernos pretos esquecidos na casa dos pais. As conversas intermináveis na Lagoa Azul, em Sintra, foram substituídas por jantares acalorados – que não podem mesmo passar da meia-noite porque amanhã trabalhamos todos cedo e temos um dia chato lá no escritório. A revolução não passará na televisão, mas também não terá episódio especial na plataforma de streaming da moda. Perdemos todos um pouco a paixão e está difícil encontrar o disco para colocá-lo a tocar mais uma vez. Só mais esta vez.

“I see the world”

Release

Trinta anos desde 27 de agosto de 1991. Tudo mudou: passámos das cassetes aos CDs, passando pelos mini disc, torrents, mp3 e voltámos aos vinis. Os concertos estiveram cheios, vazios e estarão novamente repletos. Tivemos várias crises económicas, políticas, sociais e até uma pandemia completamente inesperada. A Vedder mais nova já canta, os Chicago Cubs ganharam uma World Series, as redes sociais aproximaram e afastaram as pessoas e os Pearl Jam nunca deixaram de tocar.