Os magotes de turistas, as buzinadelas constantes, as passadeiras cheias. O sol quente, o barulho dos talheres, as sopas e empadas a sair. Os guias à espera dos viajantes debaixo de um guarda-sol, o ocasional vernáculo de um condutor de Uber obrigado a parar no sinal vermelho. O caos do Chiado numa tarde de verão. E, no meio deste cenário, à porta de um tuk tuk branco parado no Largo do Camões, encontramos João Ferreira, preparado para entrar.
A visita não é exatamente casual: quem vai ao volante do tuk tuk, que recebe Ferreira e os poucos jornalistas que cabem, é Tiago Salazar, escritor, candidato nas listas da CDU e proprietário deste tuk tuk, um modelo já descontinuado onde escreveu com marcador cábulas sobre as informações que traz aos turistas — o nome da rainha que mandou construir a Basílica da Estrela (Maria I, cumprindo uma promessa depois de engravidar), por exemplo. Desta vez, não traz turistas, mas a ideia também é mostrar que um tuk tuk não é um táxi — idealmente, é conduzido por um animador turístico, que Salazar também é — e a atividade merece profissionalização — duas propostas que constam do programa da CDU para Lisboa.
É neste sentido que João Ferreira começa por defender a criação de condições para a carreira destes profissionais, que são ao mesmo tempo condutores e guias. Logo se ouve a voz de Salazar:
Aqui ao lado está o elevador da Bica, é um dos quatro (de nove) elevadores que restam na cidade de Lisboa, todas do mesmo engenheiro. Era francês, Raoul Mesnier.
No banco de trás, Ferreira espera pelo fim da explicação para continuar. “Estão aqui a fazer o percurso que qualquer turista faria. E, como veem, há outra parte aqui do trabalho que deve ser considerado…
Aqui fica a livraria Letra Livre, uma das minhas principais recomendações. E ali o ateliê Júlio Pomar, meu amigo. É uma casa pouco visitada, infelizmente.
“… As pessoas entram nesta profissão com diferentes qualificações, até motivações, e há uma desvalorização da profissão. É preciso regulamentá-la. Se apanharem um tuk tuk à sorte, não é garantido que vos aconteça o mesmo que aqui”, avisa João Ferreira. “Nem sempre há os mesmos conhecimentos, e há criatividade…”
Aqui foram gravadas várias cenas do filme A Casa dos Espíritos, com o Jeremy Irons, no pressuposto de ser Santiago do Chile. O Palácio de São Bento passou pelo Palácio de la Moneda. Eles dizem que o original é mais bonito…
Pausa. Por uns minutos, Ferreira e Salazar trocam de papéis. O condutor estaciona mesmo ao lado da Assembleia da República, sai do lugar e contorna o tuk tuk para explicar aos jornalistas as dificuldades da profissão.
Mais uma vez, a lição é prática: faltam lugares de estacionamento para estes veículos — “estamos aqui clandestinos”. É quase um desafio: enquanto Salazar explica que há uma “prática de multa reiterada” contra os tuk tuk, que os guias fazem um “trabalho de embaixada” com as explicações que dão, que não havendo uma profissionalização não há critérios nem requisitos para as línguas que falam ou o conhecimento que têm, a polícia vem avisar a pequena comitiva: não se pode parar ali. Ferreira pede cinco minutos de paciência, Salazar queixa-se de ser “tratado como se fosse um meliante” e lembra que só os tuk tuk conseguem oferecer um tipo de turismo específico, guiado pelas “ruelas” de Lisboa.
Ferreira ainda aproveita o cenário para explicar as propostas da CDU: criar um contingente para os tuk tuk, criar ligares de estacionamento, profissionalizar a profissão. Tudo sintomas de um mal maior da cidade de Fernando Medina: “O crescimento do turismo surge desenquadrado de qualquer perspetiva de regulamento, os tuk tuk são um exemplo disso”.
Dos Airbnb aos TVDE, Ferreira discorre sobre os perigos de deixar o desenvolvimento da cidade “nas mãos do mercado” — Lisboa “escancarou as portas” a modelos de negócio desregulados e a uma exploração “desapiedada” dos trabalhadores, critica. Para salvaguardar quem trabalha, mas também a qualidade da “experiência turística”, é preciso regular, nos tuk tuk como no alojamento local. Neste último ponto Ferreira é, aliás, menos rígido do que Medina, que quer proibir qualquer licença nova, em qualquer ponto da cidade — o comunista diz que isso seria “a visão de quem abdica de regular a atividade turística”.
Ciao, not from here
A viagem leva o pequeno grupo ao jardim da Estrela –jardim Guerra Junqueiro, corrige Salazar, antes de se despedir — onde Ferreira encontrará muitos daqueles sobre quem falou na última meia hora de passeio: os turistas. Por entre uns “not from here” e “ciao”, começa a desejar uma “nice stay”; noutros pedaços de relva há piqueniques de adolescentes, que ainda não votarão.
Ferreira, que prometeu visitar a freguesia — tem ao lado o candidato, Tiago Mendes — onde o problema da Habitação atingiu uma “dimensão incontornável” e se registam ameaças de despejos, continua. Nas faixas etárias mais avançadas tem mais sorte. “Nasci na maternidade Alfredo da Costa, moro em Queluz há 40 anos mas venho cá matar saudades. Havia ali o cinema Paris, mas está em ruínas. É uma pouca vergonha. Faça alguma coisa!”. Ferreira diz que sim, José Manuel Proença, que em tempos foi jornalista e cobriu a campanha presidencial de Ramalho Eanes, sorri-lhe e pergunta se está combinado. Ao Observador nega que costume votar no partido, mas aqui o voto parece assegurado.
Mais à frente, as ocasionais reclamações — “falam muito, mas não fazem nada”, queixa-se Adélia Prata, que faz hoje 92 anos e acaba por encontrar um ponto comum com Ferreira, quando reconhece que a construção em Lisboa “é só para os ricos”. “Ora bem, ‘tá a ver!”, responde o candidato. “Olhe, faço votos para que vocês ganhem”. Só não explica se votará mesmo.
Ferreira segue e interrompe um jogo de dominó em que o clima lhe é favorável — entre os três idosos, há um que se diz militante do PS mas “arrependido” (“corrija essa opção”, pede Ferreira), outro que lhe dá razão (“esta junta é PSD e CDS e fecharam a Casa do Idoso…”) e outro que costuma votar PCP. Ferreira assegura que gostou muito “deste bocadinho”. Tenta o mesmo na mesa do lado, que joga às cartas, mas o que o jogador que interpela queria mesmo, além dos folhetos da CDU, era uma caneta para ir apontando os resultados do jogo.
Por entre os turistas e os que não aceitam folhetos, Ferreira ainda consegue, ainda assim, angariar algumas simpatias. Já à saída do jardim, conhece Natália de Lurdes, sentada ao lado do quiosque da amiga Elisabete. Natália comunica-lhe logo à partida que até costumava votar CDU, mas agora vai votar em branco. Ferreira dedica-se a explicações pedagógicas sobre a inutilidade do voto em branco, mas com cinco minutos de conversa e informações úteis para que Natália concorra aos apoios Covid para o seu negócio, sai dali com promessas de votos. “Se tiver o coração como a cara, ‘tá ganho!”. O candidato sorri e segue. Nestas coisas da rua, já se sabe que as promessas de votos aparecem mais rápido do que as cruzes no boletim, no dia das eleições.