Se ocasionalmente já deram por vós a googlar “greatest rock’n’roll documentaries ever” às duas da manhã de uma sexta-feira à noite, então é estatisticamente razoável concluir que:
a) a vossa vida social está de rastos (e aqui deixo um abraço solidário);
b) deram com uma menção a “I Am Trying to Break Your Heart”, um filme dedicado à criação de Yankee Hotel Foxtrot, que os Wilco editaram fez 20 anos há dias.
“I Am Trying to Break Your Heart” não é um documentário convencional: raras vezes vimos uma banda desintegrar-se e as relações entre os músicos que a compõem colapsarem de forma tão pungente – Jeff Tweedy vomita ocasionalmente, à conta de enxaquecas punitivas que o levaram à dependência de medicamentos, a insegurança de Jay Bennett manifesta-se a cada frame, os dois (Tweedy, o líder da banda, Bennett, o principal arranjador) andam às turras o filme todo, ao ponto de Tweedy despedir Bennett no fim das gravações e entregar a mistura final dos temas a outro produtor, desgostoso que estava com o excesso de arranjos que Bennett colocara no disco.
[o trailer de “I Am Trying to Break Your Heart”:]
Numa indústria que tende à mitificação e à romantização é raro encontrar um documentário como “I Am Trying to Break Your Heart”, frontal, honesto e brutal a expor a humanidade falhada dos seus objetos; Yankee Hotel Foxtrot faria dos Wilco estrelas no firmamento indie e semi-estrelas do mainstream – já Jay Bennett morreria na miséria, sem dinheiro para se tratar, enquanto Tweedy teve de lutar contra a dependência de medicamentos. E nunca mais os Wilco foram tão imaginativos, tão imprevisíveis, tão capazes de nos ludibriar três, quatro vezes no intervalo de uma só canção.
Algo de puro, belíssimo, morreu ali, dando lugar a uma banda folk-rock competente, ainda capaz de grandes momentos, mas agarrada ao revivalismo desse mesmo folk-rock, como se os Wilco se houvessem tornado num eco dos anos 70. Mas Yankee Hotel Foxtrot – caramba – é daqueles discos para os quais é preciso inventar novos palavrões de modo a acentuar o espanto que sentimos da primeira vez que o ouvimos, a maravilha que ainda nos assoberba quando lá regressamos.
Vindos de dois discos soberbos (Mermaid Avenue, de 1998, a meias com Billy Bragg, e Summerteeth, de 1999), os Wilco viram-se catapultados, na viragem do século, para um estatuto de semi-estrelas que lhes havia escapado nos dois primeiros discos, A.M. (de 1995) e Being There (de 1996), quando eram uma banda à procura da ligação entre a agressividade do rock e a intimidade da folk.
[“Jesus, Etc.”, do álbum “Yankee Hotel Foxtrot”, aqui ao vivo em 2003:]
Todas as grandes carreiras precisam de um momento de sorte, uma guinada, mas poucas guinadas foram tão inesperadas quanto Mermaid Avenue – Nora Guthrie, a filha de Woody Guthrie (um dos primeiros heróis folk e o pai espiritual do Dylan revivalista da folk política), encontrou uma série de letras escritas pelo pai, que este não chegara a musicar e andou à procura de quem o pudesse fazer, até que a tarefa recaiu numa parelha improvável: Billy Bragg e os Wilco. Se Bragg era já uma figura reconhecida da folk política, os Wilco eram desconhecidos cujas canções não se debatiam propriamente de forma demorada no sistema de segurança social ou na guerra.
Mermaid Avenue foi a mais improvável das vitórias – um disco com música escrita por um autor e uma banda, com letras de um herói folk morto, um disco de folk-rock que vendeu mais de um quarto de milhão de unidades numa altura em que as tabelas de vendas eram dominadas pelas Britneys deste mundo. Mas a vitória não foi só comercial: o que fazia elevava Mermaid Avenue à grandeza era uma impressionante quantidade de soluções melódicas que até aí fora alheia tanto a Bragg como aos Wilco.
A razão desta nova capacidade melódica não é propriamente um segredo: Jay Bennett, que entrara para os Wilco depois de A.M., estava cada vez mais confiante enquanto co-adjuvante de Jeff Tweedy, criando linhas melódicas de teclados (pianos, wurlitzers, hammonds), guitarras, harmónicas, e produzindo as canções por camadas, com uma atenção ao detalhe por vezes quase paranoica. Não pela primeira vez na sua carreira – e certamente não pela última – a vontade de Bennett levar à sua avante criou problemas: Bragg rejeitou as produções de Bennett (por uma vez Bennett queria uma produção mais seca), as partes não conseguiram combinar uma digressão para promover o disco e ainda houve disputas em termos de royalties; apesar de tudo isto, Mermaid Avenue é um tremendo disco – e mais tarde houve um segundo tomo, menos feliz, e ainda um terceiro, que basicamente reunia tudo o que Bragg e os Wilco haviam deixado na gaveta.
Mas as gravações de Mermaid Avenue trouxeram o som de Summerteeth, uma inusitada combinação de folk, rock e pop tingida de psicadelismo – tudo à conta de um mellotron que Bennett comprou durante as gravações de Mermaid Avenue. Bennett apaixonou-se pelo som do mellotron, Tweedy idem, e a partir daí Bennett entrou numa demanda de tornar cada canção hiper-melódica e repleta de harmonias sem fim, transformando as gravações de Summerteeth numa espécie de “Apocalypse Now” da música, com os músicos a enlouquecerem uns após os outros.
Summerteeth é uma obra-prima e foi imediatamente reconhecido como tal, mas não nas tabelas de vendas (onde só registou 200 mil vendas). Os números, contudo, não contam a história toda, visto este ter sido o exato momento em que a largura de banda caseira aumentou consideravelmente, conduzindo à explosão da pirataria musical. O resultado foi paradoxal: Summerteeth vendeu menos que Being There, mas permitiu aos Wilco atingir o estatuto de ícones do indie-rock, fazer digressões mais longas, para mais gente e em sítios mais longínquos.
O que é uma banda faz quando era suposto ser do folk-rock, de repente se torna num laboratório de exploração musical e isso leva a menos vendas mas a música mais rica e maior reconhecimento dos pares e dos fãs, enquanto é pressionada pela editora para vender mais, porque é assim que o capitalismo funciona?
[“I Am Trying to Break Your Heart”, ao vivo em 2009:]
A tensão da indecisão está à mostra em “I Am Trying to Break Your Heart”: mais uma vez, Bennett quer mais e mais arranjos, mais instrumentos, eletrónica, arranjos de cordas, slide-guitar, tudo o que houvesse ao cimo da Terra. Este não era o único problema – a banda estava descontente com a incapacidade que Ken Coomer, o baterista, manifestava em acompanhar esta nova fase dos Wilco, mais experimental, mais inovadora, o que obrigava a muito mais que acertar na tarola em 4/4.
Para o lugar de Coomer veio Glenn Kotche, uma recomendação de Jim O’Rourke, compositor, produtor e amigo de Tweedy. Pouco tempo antes, Tweedy, Kotche e O’Rourke haviam editado um disco sob o nome Loose Fur e Tweedy ficou tão impressionado com Kotche que o convidou para os Wilco. Pouco depois, insatisfeito com a produção de Bennett, e sem lhe pedir autorização, Tweedy pediu a O’Rourke que remisturasse uma canção e a banda gostou tanto que O’Rourke se tornou o produtor oficial de Yankee Hotel Foxtrot, criando um problema insolúvel com Bennet.
Bennett e Tweedy haviam composto Summerteeth e, das onze canções de Yankee Hotel Foxtrot, assinam a meias oito – as outras três são apenas de Tweedy. É bastante claro que musicalmente era uma parceria extraordinária; mas se dois feitios obsessivos e dominantes têm opiniões opostas, o resultado invariavelmente será uma guerra — e neste poleiro só podia haver um galo.
[“Ashes of American Flags”:]
Nunca saberemos o que Yankee Hotel Foxtrot poderia ser nas mãos de Bennett, mas “I Am Trying to Break Your Heart” oferece-nos pequenos trechos que dão a entender que seria um disco muito mais cheio – e O’Rourke, ao longo dos anos, afirmou que procurou limpar o excesso de arranjos sem perder inventidade.
É possível que O’Rourke tenha acertado – Yankee Hotel Foxtrot é deslumbrante, mantém um quantidade invejável de arranjos que elevam as canções (que podem ir do som das guitarras a um arranjo de metais sobre uma slide-guitar e estou apenas a enumerar elementos distintivos de uma canção, “I’m the man who loves you”), mas sabe dosear os arranjos, colocando-os em fundo, ao redor da melodia, em vez de os tornar protagonistas. Digamos que: Yankee Hotel Foxtrot é um disco que respira melhor que Summerteeth.
Isto apesar de ser um disco bem mais negro que o seu antecessor – a primeira frase que Tweedy canta no disco, na canção “I am trying to brake your heart”, é “I’m an american aquarium drinker”, uma alusão ao modo como tentou lidar com as suas crises de ansiedade e enxaquecas constantes.
[ouça “Yankee Hotel Foxtrot” na íntegra através do Spotify:]
Onde Summerteeth encontrava escapatórias que conduziam a sítios de luz, Yankee Hotel Foxtrot aninha-se na sombra, desce a acordes menores, convoca melancolia e reflexão. Talvez por isso Tweedy quisesse menos arranjos – mas a solução encontrada, deixar uma parte dos arranjos mas mantendo espaço para a melodia, atribui ao disco uma espécie de qualidade onírica, como se as canções não tivessem gravidade e pairassem no ar, cada arranjo um cometa a entrar e sair da órbita da canção.
Por mais canções admiráveis que os Wilco tenham criado posteriormente, algo morreu aqui – os Wilco tornaram-se a banda de um homem só, reduziram-se quase a um revivalismo folk-rock, perderam a dissonância, os cromatismos, tudo aquilo que em conjugação com a capacidade melódica de Tweedy os tornavam únicos e imprevisíveis. De tal forma que nem a editora com quem os Wilco trabalhavam em 2001 — a Reprise — quis lançar o álbum. A banda terminou o contrato, conquistou os direitos sobre as gravações e disponibilizou o disco todo online nesse mesmo ano (só em 2002 o álbum teria edição física, pela Nonesuch).
Mas durante três discos e meia dúzia de anos, culminando em Yankee Hotel Foxtrot, foram das mais confiáveis fontes de espanto que o mundo conheceu.