Pedro Pablo Pichardo é um jogo de xadrez. Com o semblante fechado durante grande parte do tempo, parece estar sempre a equacionar o passo seguinte, a jogada seguinte, a mudança seguinte. Naquele semblante fechado, estão milhares de milhões de cenários, de hipóteses, de possibilidades. Contudo, basta um simples xeque-mate para desmontar Pichardo. Afinal, o campeão olímpico tem sorriso fácil e até traz piadas no bolso.
A metáfora não é inocente. Pedro Pichardo gosta de jogar xadrez e usa a modalidade para explicar o porquê de nunca ter colocado em causa a certeza de que ia chegar ao ouro em Tóquio. “Nunca duvidei. Quando tento fazer alguma coisa, não duvido. Gosto muito de jogar xadrez, analiso muito a minha vida como no xadrez. E antes de fazer alguma coisa, analiso. Quando tomo uma decisão é porque já analisei e já pensei em muitas opções. Só fiquei muito nervoso antes da final em si. Quanto estava no quarto, na Aldeia Olímpica, estava muito nervoso. Mas depois de chegar à pista de aquecimento já comecei a relaxar um bocado”, diz-nos o atleta.
Depois do ouro olímpico, a Liga Diamante: Pichardo vence grande final do triplo salto em Zurique
A conversa acontece no Parque das Nações, com o Rio Tejo ao fundo e o barulho natural de uma tarde de segunda-feira em Lisboa, e tem como pretexto o facto de a Red Bull ter acabado de lançar uma lata de homenagem a Pichardo que inclui o autógrafo do triplista. Os assuntos, porém, são vários — mas quase todos vão parar ao momento em que no Japão, há mês e meio, saltou para se tornar o quinto campeão olímpico português.
“Dizer que não foi um ano de sonho seria ingrato mas dizer que foi também é hipócrita. Porque eu queria mais. É óbvio que quando falamos de títulos não podia conseguir mais, quando digo que queria mais refiro-me às marcas. Nesse sentido, queria fazer saltos maiores e não aconteceu. Mas sinto-me feliz porque consegui levar todos os títulos de 2020/21 para o país e para minha casa (…) A marca de 18 metros é gratificante mas só quando conseguir bater o recorde [18,29, do britânico Jonathan Edwards] é que vou sentir-me realmente realizado como atleta. Para mim, a marca que tenho — 18,08, 18,06 — não significa grande coisa até agora. No dia em que significar muito para mim também significa que já estou conformado com aquilo que já atingi. E até agora não estou conformado”, garante o luso-cubano, que quer “passar a barreira dos 18,30 metros” e para isso vai “continuar a trabalhar para estar em boa forma, ter boa saúde e esperar que o salto aconteça”.
Pedro Pichardo é treinado pelo pai, Jorge, e é ele que normalmente estabelece as marcas que o atleta tem de atingir nos próximos tempos. O campeão olímpico limita-se a dizer que confia no pai e, para explicar o porquê, recorda uma história de há quase dez anos. “Lembro-me de uma vez em que ainda estávamos em Cuba, em 2012, tinha eu 19 anos. Tinha acabado de voltar do Mundial de juniores, em Barcelona, e o meu pai deu uma entrevista lá no bairro a dizer que eu ia ser o primeiro cubano a atingir a barreira dos 18 metros. Eu tinha 19 anos! Anos depois, consegui. A partir daí, comecei a acreditar muito mais no meu pai. Eu já acreditava mas depois disso comecei a acreditar ainda mais. Agora não duvido, quando ele fala numa marca… Claro que às vezes digo ‘o meu pai está maluco’ mas se ele diz é porque há alguma coisa que podemos fazer. Ele é maluco mas também tenta falar dentro daquilo que é possível fazer. Eu acredito no meu pai. Se ele fala naquela marca, os 18,40, eu acredito nele e vou trabalhar e pôr tudo de mim para tentar atingir aquela marca. Agora já não diz que vou ser o primeiro cubano a chegar lá, diz que vou ser o primeiro português”, lembra o triplista do Benfica, que tem plena noção das vantagens e das desvantagens de ser treinado pelo pai desde criança.
“A vantagem é que se eu não tivesse o pai que tenho não tinha chegado onde cheguei, não tinha atingido nada, por tudo aquilo que passei lá em Cuba. O meu irmão desistiu, eu tinha um irmão que também treinava e pelos problemas em Cuba não aguentou e desistiu. Graças a Deus, eu continuei com aquele ânimo, com aquele apoio do meu pai, sempre acreditei nele como ainda hoje acredito… Acho que o meu irmão não acreditou muito, eu acreditei mais e continuei. E desde então que o meu pai não me larga. Tenho 28 anos e por vezes ele ainda acha que tenho 14 ou 15. Quer sempre controlar tudo, a minha vida pessoal, a minha vida como atleta. E é complicado porque vivemos juntos, torna-se ainda pior. Ele só fala de desporto, até agora de férias. Sempre que tem um momento, fala de desporto. Tem discussões com a minha mãe porque está sempre no quarto a ver vídeos, a estudar os ângulos de saída, os tempos… Tudo o que é preciso para atingir as marcas que ele quer. É sempre assim. E quando sai do quarto é para falar comigo de desporto. Não fala de outra coisa. Não me larga, é complicado. Tenho de o mandar de férias sozinho e não lhe dar a minha morada”, brinca Pedro Pichardo.
Ainda de férias depois de ter conquistado a medalha de ouro tanto nos Jogos Olímpicos como na Liga Diamante, o atleta diz que agora é “muito mais” reconhecido na rua e que as pessoas lhe agradecem por ter escolhido Portugal para viver e representar. O agradecimento é mútuo e Pichardo deixa-o patente em todas as entrevistas. “Portugal tem tido muita importância pela pressão que sinto de não querer falhar. É uma pressão em que penso todos os dias quando acordo. Quando chego ao treino, tenho de treinar bem, tenho de me cuidar, para não falhar quando chegar a uma competição. Estou num país que me deu a oportunidade de o representar, não posso ir lá brincar. O povo português, este apoio que tenho recebido, dá-me essa ideia de que não posso falhar. Tenho de fazer grandes saltos para agradecer ao país”, atira o luso-cubano, recordando que o quarto lugar nos Mundiais de 2019 o motivou para chegar ao ouro em Tóquio, já que pensou que “não podia falhar como da outra vez”.
Depois de uma época extensa e muito desgastante, Pedro Pichardo garante que o plano para 2022 para por “ter boa saúde” antes de tudo. Só depois é que vai preocupar-se com as competições, nas quais agora ainda não pensa, e procurar melhorar a técnica do jump, o último salto que faz e que o leva para a caixa de areia. “O meu jump é bonito, parece que vou muito longe, mas na verdade não vou assim tão longe. Segundo o meu pai! A mim parece-me bem mas ele é que sabe. Se ganhar alguns centímetros no jump vou atingir a marca de que ele fala. O erro acontece na fase de voo”, conta o atleta de 28 anos, acrescentando que, apesar de ter saltado 17,70 metros, chegou à Liga Diamante já com algumas dificuldades físicas mas não contou a ninguém.
“Na última competição, na Liga Diamante, já sentia os tornozelos um bocadinho doridos. O meu pai estava chateado porque eu fui à competição assim e não lhe disse nada nem a ele nem aos médicos. Fui para lá supostamente bem mas tinha dores. Quando fiz o primeiro salto, que foi 17,26, ele perguntou-me o que se passava, disse que ali não podia ser só aquilo. Fiz o primeiro e o segundo, o terceiro não consegui fazer e falei com o meu pai, disse-lhe que estava com dores. Ele ficou chateado porque devia ter dito alguma coisa. Descansei um bocadinho para que, se alguém saltasse um bocadinho mais, ainda tivesse energia para responder. Ninguém saltou mais e no último salto dei tudo o que tinha. E saltei 17,70″, revela Pichardo.
Pai de uma filha, o atleta confessa que não quer que Rosalis Maria lhe siga os passos no desporto e que, por agora, só vai inscrevê-la na natação para “aprender a nadar porque o pai não sabe”. Sobre as disparidades e dificuldades que as mais distintas modalidades ainda sofrem em Portugal, Pedro Pichardo não tem dúvidas: é preciso construir uma lógica de educação desportiva. “É preciso apoio do Governo, dos clubes. É preciso começar a mostrar às crianças e aos pais que o atletismo também é bom. Se calhar não me fica bem dizer isto mas o problema é económico. Toda a gente vai para o futebol por causa do dinheiro. Qualquer jogador de futebol consegue viver bem e no atletismo não é assim, tens de ser mesmo muito muito muito bom para conseguires viver mais ou menos. Qualquer jogador de futebol que seja suplente de uma equipa principal ganha mais do que eu. Essa parte é que me choca”, afirma, fazendo depois um paralelismo com a realidade desportiva que se vive em Cuba.
“O futebol aqui não é como o basebol em Cuba. Eu quero que toda a gente entenda que eu não tenho problema nenhum com o futebol. Mas em Cuba o principal desporto é o basebol e eu chegava lá com os meus títulos e era um bom atleta. Cá não acontece igual. Cá dizem ‘ok, és campeão olímpico mas não jogas à bola’. Qual é a diferença? Eu sou bom atleta quer faça atletismo, quer jogue à bola, quer jogue andebol, o que for. Sou bom atleta. Aqui, para se ser reconhecido, tens de jogar à bola. Porque esses é que têm grandes carros, esses é que têm uma boa vida. É só isso que gostava de que começasse a mudar aqui. Se uma equipa está na Liga dos Campeões, já é boa. Eu ganho a Liga Diamante, que é a Liga dos Campeões do meu desporto, e ninguém sabe o que é”, defende Pichardo.
Por fim, para além de revelar que guarda o ouro olímpico junto às outras medalhas para não “ficar conformado”, o luso-cubano diz que vai competir até aos 35 anos e que ainda quer mais dois pódios nos Jogos, tanto em Paris 2024 como em Los Angeles 2028. “Continuo a ser o Pedro, o miúdo que chegou a Portugal com a ambição de ganhar tudo. Quero ir a Paris e a Los Angeles, vou tentar ver se consigo ganhar mais duas medalhas olímpicas e depois acabo a minha carreira”, termina.