Se não conhece a história de “Dr. Death”, prepare-se. Conta a história de Christopher Duntsch (interpretado por Joshua Jackson), um neurocirurgião norte-americano que durante vários anos foi negligente, ao ponto de lesionar doentes de forma permanente e até de provocar a morte de dois deles. Para impedir que Duntsch continuasse a operar pacientes foi preciso muito tempo, lutar contra um sistema viciado e a ação fundamental de outros dois médicos. E é essa a narrativa da série.
Grande parte dos eventos reportados nesta minissérie, cujos oito episódios chegam dia 30 de setembro à HBO Portugal, aconteceram há menos de uma década. A proximidade temporal é algo com que Patrick Macmanus, criador de “Dr. Death”, joga a seu favor. E tudo começou com um podcast com o mesmo nome. “Dr. Death” foi um dos fenómenos de 2018, apresentando esta história pela primeira vez a muitas pessoas. A adaptação para televisão corre em simultâneo com as várias camadas desta história, que tão facilmente pega na arrogância de Duntsch – e dá-lhe o contexto necessário, não para o humanizar, mas para realçar as suas frustrações –, como no heroísmo de dois médicos, Robert Henderson (Alec Baldwin) e Randall Kirby (Christian Slater), que, ao perceberem que algo de errado se estava a passar, decidiram fazer tudo a fim de parar a existência de Duntsch dentro do sistema de saúde norte-americano (que sai muito fragilizado desta série).
Os oito episódios são realizados por três realizadoras diferentes e Patrick Macmanus quis que a série fosse filmada por mulheres. Mais do que uma série para binge watching, “Dr. Death” deve ser vista como um filme construído por vários momentos. A construção e desconstrução da figura de Duntsch é arrepiante. Até porque a questão, lançada no primeiro episódio, está sempre presente: será ele um incompetente ou um sociopata (que entretanto foi condenado a prisão perpétua)?
Estivemos à conversa com Christian Slater, um dos bons da fita da história. Calça as botas de cowboy de Randall Kirby, exuberante, explosivo, alguém que sabe como pressionar as pessoas a fazerem o que quer. Não é manipulação, é talento. E assenta que nem uma luva a Slater.
[o trailer de “Dr. Death”:]
https://www.youtube.com/watch?v=0LXrdfDnuYo
Em “Dr. Death” os bons da fita são imediatamente apresentados. Como é estar nesse papel?
É ótimo! Por exemplo, é simpático responder a questões sobre o bom da fita, é mais agradável falar da personagem, porque posso sorrir quando o faço, e não ficar horrificado. É uma energia diferente, gosto disto ser o bom da fita, quer fazer isto mais vezes. Vivemos tempos loucos, escuros, e se houver uma oportunidade para trazer alguma leveza ou até algum humor, a algo tão escuro como “Dr. Death”, fico muito feliz com isso.
Trabalhou com o verdadeiro Randall Kirby para desenvolver a personagem?
Tinha planos para me reunir com o Dr. Kirby. Tinha voo marcado para Dallas, mas entretanto aconteceu a pandemia e tive de cancelar essa viagem. Contudo, tenho um cunhado que é cirurgião vascular, como o Dr. Kirby. Consegui ir a Baltimore e assistir a cirurgias com ele. Estive próximo, perto dos enfermeiros e com uma vista privilegiada sobre médicos talentosos a executarem o seu trabalho. Fiquei impressionado. Para ele, aquilo já nem é especial. Para mim parece-me algo difícil e importantíssimo, cortar e trabalhar no corpo de uma pessoa. Estes tipos fazem isto vezes e vezes sem conta, é como se fossem mecânicos de carros. Há uma tranquilidade, calma e confiança… é impressionante.
Uma série como “Dr. Death” pode chamar a atenção para algumas falhas gravíssimas do sistema de saúde norte-americano?
O nosso sistema de saúde é uma trapalhada há muito tempo. Precisa de ser revisto urgentemente. O que mais assusta em “Dr. Death” é a perceção do quão foi permitido a Christopher Duntsch. O sistema permitiu que existisse e continuou a empurrá-lo para a frente, para não ter de lidar com o problema. Aliás, olhar sequer para os problemas e ver os danos que ele estava a provocar. Ele safou-se durante demasiado tempo. Este tipo de situações é algo que se tem de resolver com urgência.
Apesar de não ser a série típica sobre hospitais/médicos, muito se passa nos corredores de hospitais. Como foi filmar nesse ambiente durante a pandemia?
Muito complicado. Éramos testados todos os dias. Como era um programa sobre médicos, havia muitas máscaras disponíveis. O plano inicial era filmar tudo num hospital, mas foi impossível fazê-lo no local, porque a ala do hospital que iríamos usar teve de ser usada para tratar de pacientes com Covid-19. Tivemos de construir o hospital num estúdio. Mas… foi assustador… foi uma experiência bastante reveladora para nós. Agora [a entrevista foi realizada no início de agosto] ainda é mais assustadora, com a variante Delta. Numa altura em que pensávamos já estar a salvo, em que poderíamos novamente sair, estamos a ser puxados novamente para dentro.
Os cuidados com a pandemia, a distância, dificultaram a relação com os colegas?
A distância não facilitou. Com quem mais trabalhei foi com o Alec Baldwin. Não sei… talvez tivéssemos passado mais tempo juntos. Tínhamos de estar separados na maior parte do tempo, só nos víamos – e tirávamos as máscaras – quando filmávamos. Havia muita distância. Nas filmagens há sempre uma certa camaradagem. Sei que o Alec é muito divertido e, normalmente, estaria a fazer mais piadas do que as que fez. Mesmo assim, conseguimos criar um bom ambiente e divertirmo-nos.
Já conhecia o podcast que originou a série?
Falaram-me dele e ouvi, foi assim que fiquei a conhecer a história. É assustadora, horrífica. Novamente, traz ao de cima os problemas do sistema de saúde norte-americano. Contudo, fiquei feliz por saber que existiram dois médicos que decidiram ser heróis e fazer o que estava certo. Puseram as suas carreiras em risco e apostaram tudo na causa certa. A classe médica gosta de cuidar dos seus, tentam sempre fazer a coisa dentro de casa, fica tudo em silêncio. Mas estes médicos foram contra isso, desmontaram o sistema em nome da justiça. Foram verdadeiros heróis. É admirável o que fizeram.
Falou com familiares das vítimas?
Não, não conheci ninguém. A única pessoa com quem falei foi com o Dr. Kirby. Sentei-me ao lado dele no Tribeca Film Festival e falámos um pouco. Ele é muito apaixonado e divertido. Gostei de o conhecer. Ah, e calça botas de cowboy, faz mesmo isso, ele opera com essas botas calçadas. É esse tipo de pessoa. Confessou-me que achava que o Christopher Duntsch nunca deveria ter saído da pesquisa, nunca deveria ter ido além de experiências com ratinhos.
Atualmente, há uma tendência para fazer minisséries em volta de histórias que, noutros tempos, seriam um filme. Agrada-lhe esse presente/futuro?
As pessoas agora têm sistema audiovisuais impressionantes dentro de suas casas. É como ir ao cinema. Além disso, um blockbuster, atualmente, chega às plataformas de stream uma semana depois de estrear no cinema, isso acontece na HBO Max ou com a Prime Video. É assustador para os cinemas, claro, mas parece que este é um caminho inevitável. O mundo do entretenimento está a mudar-se para casa. E adoro trabalhar neste tipo de projetos, permite-nos entrar mais nas personagens, ter uma experiência mais rica.
A sua personagem em “Mr. Robot” também é contra o sistema. Gosta desse tipo de figuras?
Tenho tido algumas oportunidades deste género na minha carreira. Há vários anos entrei num filme, “Volume no Máximo”, em que fazia de DJ que atacava a direção de uma escola. Era o meu combate. Com o “Mr. Robot” a escala das coisas só ficou maior, agora ataco uma grande empresa. Adoro esse tipo de personagens e esse tipo de história. Há um lado Robin Hood, tirar aos ricos para dar aos pobres, gosto de estar envolvido nisso.