A história é, no mínimo, insólita. Em 2015, Ana Abrunhosa (agora ministra da Coesão Territorial) recebeu como prenda de casamento, do amigo e presidente da Câmara Municipal de Idanha-a-Nova, Armindo Jacinto, dois quadros. Mas as peças — viria a ser decidido em tribunal — tinham sido “subtraídas” (a expressão é da juíza) do ateliê da artista Cristina Rodrigues. Quando a história se tornou pública, com um artigo do Expresso publicado em janeiro deste ano, Ana Abrunhosa comprometeu-se a devolver as obras, “de forma a ajudar à resolução de um conflito” a que se dizia “totalmente alheia”. Cumpriu? E onde estão os quadros?
Os dois quadros foram pintados por Cristina Rodrigues, uma artista natural do Porto que se apaixonou pela cultura raiana e que por ali se estabeleceu para criar peças representativas da região. O ateliê de Cristina Rodrigues, de onde os dois quadros foram “subtraídos” em novembro de 2015 (esses factos foram dados como provados num processo que decorreu no tribunal de Castelo Branco), funcionava em instalações da Câmara Municipal de Idanha-a-Nova. Quem os “subtraiu”, não foi possível apurar.
O certo é que Ana Abrunhosa — que acabou por ser ouvida em tribunal por causa de um processo instaurado por Cristina Rodrigues, a propósito destes e de outros trabalhos que a artista reclamava terem desaparecido contra a sua vontade — contou ter recebido as obras diretamente das mãos de Armindo Jacinto, como uma prenda de casamento do “amigo” da agora ministra. Ao Expresso, a ministra disse desconhecer o conflito judicial entre a artista e o município de Idanha-a-Nova, e garantiu: “Apesar de esta ser uma situação do foro privado, e apesar de a decisão não o obrigar, é intenção da família proceder à devolução dos desenhos ao oferente, de forma a ajudar à resolução de um conflito, ao qual somos — sublinho — totalmente alheios”.
Passaram 10 meses e o Observador foi tentar perceber o que tinha acontecido entretanto. Em resposta escrita, o gabinete de Ana Abrunhosa explica que “as obras foram devolvidas ao engenheiro Armindo Jacinto, que foi a pessoa convidada para o casamento e quem fez a oferta”. O Observador sabe que a situação apanhou Ana Abrunhosa de surpresa, quando foi chamada a tribunal para dar o seu testemunho. E não perdeu muito tempo a desfazer-se das obras depois de a sentença ser conhecida e o caso chegar aos jornais.
As duas obras foram devolvidas “no início de fevereiro de 2021, imediatamente a seguir a termos tido conhecimento da decisão do tribunal”, esclarece a resposta da ministra. “Apesar de nada nessa decisão obrigar à devolução dos quadros, decidimos de imediato fazê-lo para ajudar não só a resolver o conflito, mas também para pôr fim a uma situação constrangedora à qual fomos, éramos e continuamos a ser totalmente alheios”.
Ana Abrunhosa e o marido recorreram a uma transportadora, que fez “o registo de todo o processo” e entregou as obras “no local de trabalho do engenheiro Armindo Jacinto”. Ou seja, no gabinete do presidente da Câmara Municipal de Idanha-a-Nova.
Ora, se as obras foram subtraídas do ateliê de Cristina Rodrigues e se ficou provado que o autarca Armindo Jacinto as ofereceu a Ana Abrunhosa, porque é que a sentença não determinou que os quadros fossem devolvidos a Cristina Rodrigues? Porque, explica ao Observador fonte ligada ao processo, a ação foi interposta contra o município de Idanha-a-Nova e porque não se provou quem “subtraiu” as obras do ateliê.
Mas, aqui chegados, a ministra garante que as obras foram entregues no gabinete do presidente de Idanha. Verdade? O Observador questionou o gabinete de Armindo Jacinto para perceber em que ponto estava o cumprimento da sentença do tribunal de Castelo Branco. Uma sentença em que, como explicou o semanário Expresso, também se analisava outro episódio passado anos antes, quando a câmara se recusou a libertar outras obras da mesma artista, reclamando créditos no valor de 150 mil euros sob o argumento de que esse era o valor investido no trabalho e percurso daquela artista.
Na resposta, também por escrito, o autarca diz que o município de Idanha-a-Nova “tem apenas conhecimento de um único processo judicial (onde foi proferida sentença, já transitada em julgado) relativo a várias peças da autoria de terceira pessoa, particular e singular, de entre as quais uns desenhos que V. Exa. chama quadros que foram entregues a este município pela senhora ministra, que os tem à sua guarda (município) desde fevereiro de 2021”.
Resumindo: Ana Abrunhosa devolveu de facto os quadros ao presidente da Câmara Municipal de Idanha-a-Nova; o município recebeu-os e tem-nos “à sua guarda” desde o início do ano. Conclusão: sim, a ministra cumpriu com a promessa que fez em janeiro.
Este artigo foi produzido no âmbito de uma parceria de fact-checking entre o Observador e a TVI.