A denunciante que no mês passado trouxe a público informações internas sobre o Facebook deu pela primeira vez a cara numa entrevista ao programa “60 Minutes” da cadeia televisiva CBS. Trata-se de Frances Haugen, uma ex-funcionária da empresa de Mark Zuckerberg que se demitiu em maio deste ano e que nos meses seguintes desenterrou dezenas de documentos internos que mostram como o Facebook estava a par dos problemas causados pela rede social Instagram — sobretudo entre raparigas adolescentes —, mas optou conscientemente por dar prioridade aos lucros da empresa e por não fazer alterações no modelo de funcionamento da rede.
“Aquilo que eu vi no Facebook uma e outra vez foi que havia conflitos de interesse entre o que era bom para o público e o que era bom para o Facebook. E o Facebook, uma e outra vez, optou por otimizar os seus próprios interesses, como fazer mais dinheiro”, disse à CBS Frances Haugen, uma cientista de dados de 37 anos cuja carreira nas big tech incluiu passagens pela Google e pelo Pinterest.
Menos de um mês depois de as informações controversas terem surgido no The Wall Street Journal, Frances Haugen explicou à CBS o que a levou a expor os segredos da maior rede social do mundo. “Imagine que sabe o que se passa dentro do Facebook, e sabe que ninguém lá fora sabe”, sustentou. “A dada altura, em 2021, percebi: ‘OK, vou ter de fazer isto de um modo sistemático e vou ter de tirar o suficiente para que ninguém questione que isto é real.” Decidida a expor as informações internas do Facebook, Haugen copiou dezenas de milhares de documentos confidenciais, que incluíam sobretudo um conjunto de investigações e pesquisas internas sobre o impacto das redes.
Num dos documentos internos, por exemplo, o Facebook admite que “o discurso de ódio, o discurso político divisivo e a desinformação no Facebook e na família de aplicações estão a afetar sociedades em todo o mundo“. Para Haugen, restam poucas dúvidas de que “a versão do Facebook que existe hoje está a dividir as nossas sociedades e a causar violência étnica por todo o mundo” — incluindo, por exemplo, no Myanmar.
Segundo a denunciante, apesar dos compromissos públicos do Facebook no sentido de mitigar os efeitos do discurso de ódio na internet, a verdade é radicalmente oposta. “No seu telemóvel, pode ver apenas 100 conteúdos se se sentar e fizer scroll durante cinco minutos. Mas o Facebook tem milhares de opções para lhe mostrar”, explica Haugen, sublinhando que o algoritmo da rede social escolhe os melhores conteúdos com base em interações antigas do utilizador, mas também com base nas emoções — e está otimizado “para conteúdo que tem interações, ou reações”. Porém, “a investigação interna mostra que com o conteúdo de ódio, divisivo e polarizador é mais fácil inspirar a raiva do que com outras emoções”.
“Facebook, over and over again, has shown it chooses profit over safety,” says Facebook whistleblower Frances Haugen. She believes the federal government should impose regulations and plans to testify before Congress this week. https://t.co/YoKIyorZzu pic.twitter.com/RWlk9QOwZu
— 60 Minutes (@60Minutes) October 3, 2021
Na prática, “o Facebook percebeu que, se mudar o algoritmo para ser mais seguro, as pessoas vão passar menos tempo no site, vão clicar em menos anúncios e eles vão fazer menos dinheiro“.
Segundo a denunciante, a rede social apertou de facto a malha à desinformação e ao discurso de ódio durante a campanha eleitoral norte-americana de 2020, uma vez que percebeu “o perigo” da eleição — mas os sistemas de segurança foram desativados depois da eleição de Joe Biden e a rede social recuperou as definições anteriores, “para preferir o crescimento à segurança”. O exemplo derradeiro foi o modo como a rede social foi usada pelos conspiradores para organizar o ataque de 6 de janeiro ao Capitólio de Washington.
Além das questões da violência e do discurso de ódio, está também em causa o impacto da rede social Instagram nos adolescentes. De acordo com estudos internos do próprio Facebook, 13,5% das jovens raparigas dizem que o Instagram aumenta os pensamentos suicidas e 17% confirmam que a rede social contribuiu para piorar os seus distúrbios alimentares. Contudo, a rede social percebeu também que estes fatores só aumentavam o uso do Instagram. “Acabam neste círculo vicioso em que odeiam os seus corpos cada vez mais”, reconhece a denunciante.
O Facebook limitou-se a responder à CBS através de um comunicado por escrito e destacou que tem de equilibrar o direito à liberdade de expressão e a necessidade de manter a rede social “um lugar seguro e positivo”. No comunicado, a empresa compromete-se a “continuar a fazer melhorias significativas para lidar com a desinformação e o conteúdo malicioso”. “Insinuar que nós encorajamos conteúdo negativo e não fazemos nada quanto a isso simplesmente não é verdade”, remata.
Para a denunciante, os documentos agora expostos contradizem aquilo que Mark Zuckerberg tem dito em público — nomeadamente aquilo que o fundador do Facebook disse em março perante o Congresso norte-americano. “Retirámos conteúdos que pudessem conduzir a perigos reais iminentes. Montámos um programa sem precedentes de fact-checking por terceiros. O sistema não é perfeito, mas é a melhor abordagem que encontrámos para lidar com a desinformação“, disse Zuckerberg. O Observador é um de muitos meios de comunicação social de todo o mundo que colaboram com o Facebook na verificação de factos com vista à remoção de conteúdos falsos da rede social.