Com uma ameaça de crise no ar que é mais palpável a cada dia que passa, a dramatização parece agora ter chegado à última etapa. A escassos dias da aprovação ou do chumbo da primeira versão do Orçamento do Estado, ninguém à esquerda parece ter a certeza do que vai acontecer à hora de votar o documento. A certeza que todos partilham é outra: neste nível de tensão, é preciso começar a moldar a narrativa em caso de crise — por outras palavras, é preciso começar o passa-culpas à esquerda.

A estratégia, essa, parece comum a todos os partidos. Abrir uma crise, passando aos eleitores uma imagem de intransigência, e mais do que isso, abrir espaço para que uma direita em fase de rearrumação pudesse chegar ao poder não é mancha que nenhum queira no currículo — até por se lembrarem do que aconteceu ao Bloco após o chumbo do PEC IV, quando o Governo de Pedro Passos Coelho e Paulo Portas chegou ao poder e a bancada do partido de esquerda mirrou para metade.

A eventual crise pode, por isso, ser ganha por quem ganhar a narrativa sobre este Orçamento, concluem os partidos. E o próprio PS, que começou por apostar na docilidade e em oferecer a sua “humildade” aos partidos de esquerda, já começou a carregar no discurso duro. A última batalha começou.

Primeiro alerta. César entra em cena, deputados em sintonia

O dia, menos um para a contagem decrescente que marca o calendário da esquerda, foi de dramatização ao máximo. Primeiro sinal de alerta? A entrada de Carlos César em jogo. O presidente do PS tinha-se mantido discreto até agora. Em setembro, deixara um primeiro sinal em entrevista ao Observador, ao lembrar que o PS “tem limites” e que a estabilidade política não pode ser garantida “a qualquer preço”. Desde então, discrição — até agora. Os bastidores da esquerda começaram a agitar-se assim que chegou o alerta: um novo post no Facebook de Carlos César. Longe de ser meigo, como de costume — se há coisa com que a esquerda conta é que é para César que costuma ficar o papel de polícia mau.

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César entra em campo para acusar esquerda de querer “desaprovar OE ou censurar e derrubar Governo”

E César não foi tímido nas críticas: numa só publicação, conseguiu acusar a esquerda de estar concentrada não no Orçamento mas “na sua desaprovação ou na censura e no derrube do Governo e no termo da legislatura” e completou a narrativa que o PS começa agora a desenhar: “Fico sem perceber se, afinal, se sentem melhor a fazer oposição a um governo de direita do que a fazer acordos com um governo de esquerda”.

À mesma hora — pelo meio-dia — que surgiam nos telefones os alertas das notícias sobre a aparição de César no debate, os deputados que costumava liderar no PS — foi substituído em 2019 pela sucessora, Ana Catarina Mendes — reuniam-se à porta fechada. Da reunião, como o Observador noticiou, sairia uma conclusão transversal: o PS precisa de negociar até ao fim e até “esgotar todas as possibilidades” de entendimentos, até para desfazer uma possível imagem de intransigência. E, se “ninguém entende que haja uma crise”, como comentava um deputado com o Observador durante a reunião, se no limite ela existir mesmo, o que importa é que “fique bem claro” que o PS fez tudo o que podia — ou seja… que a esquerda não fez. Se o Orçamento não passar, “será pura tática política” de BE e PCP, insistia outro socialista.

Em clima de tensão política, deputados do PS querem evitar crise (e passar ónus à esquerda)

O argumentário estava lançado. Com as derradeiras tentativas de negociação — fosse através do longo Conselho de Ministros que decorria e que só acabaria já de noite ou nas reuniões que ainda acontecerão durante o fim de semana — chegou o passo final: a dramatização e a ameaça de crise. Se a esquerda a provocar, será castigada pelos eleitores por abrir caminho à direita (desta vez, podendo contar com um peso forte do Chega)?.

Bloco insinua tentação de crise de Costa

As contas não se faziam apenas no PS. No Bloco de Esquerda, há muito se insinua o que esta quinta-feira se concretizou de viva voz: que o primeiro-ministro pode nem sequer estar interessado em chegar a acordo, “pelo menos com o Bloco”, talvez até em acordo nenhum — há meses que alguns nomes do Bloco apostam numa eventual tentação de Costa de provocar uma crise, numa tentativa de sair reforçado de umas eleições antecipadas e tentar prescindir de uma relação à esquerda que se complica a cada Orçamento que passa.

Primeiro, Mariana Mortágua surgira, na noite anterior, a resumir todos os bloqueios que o PS fizera a propostas do Bloco. De manhã, foi a vez de o líder parlamentar, Pedro Filipe Soares, vir “constatar” em entrevista à Antena 1 que do primeiro-ministro parecia “não haver uma vontade, pelo menos com o BE, de chegar a bom porto negocial”. E ia mais longe: “Quais as intenções para isso? Pode haver várias, não sabemos, não estou na cabeça do primeiro-ministro. Aparentemente são insondáveis os seus desígnios”, ironizava.

O Bloco tem acreditado sempre que, havendo acordo, ele chegará com uma viabilização em moldes semelhantes aos do ano passado, ou seja, permitido por PCP, PEV, PAN e deputadas não inscritas. Mas esta quinta-feira faziam-se ressalvas: este ano, para haver alguma possibilidade de o OE passar será preciso oferecer ao PCP “vitórias evidentes e significativas”, para contrabalançar as perdas eleitorais que o partido tem sofrido — já não basta “ratificar as propostas mais populares do programa do PS”. 

Costa otimista? PCP põe água na fervura

E se o PCP costumava ser discreto nesta fase, e sendo certo que continua a não falar das medidas concretas que discute nas reuniões com o Governo, a verdade é que o líder parlamentar, João Oliveira, se desdobrou por estes dias em garantias de que o PCP “não está a trabalhar” num cenário de crise política.

Mas alguém estará? O comunista tem considerado “lamentável” ver ministros a falarem de eleições antecipadas e culpado o Presidente da República pela “afirmação precipitada” e “perigosa” que fez ao estabelecer o calendário para umas eventuais eleições antecipadas.

Costa diz estar “mais próximo” dos parceiros e anuncia que vai aumentar mínimo de existência

Se na quarta-feira João Oliveira tinha reconhecido que a última reunião tinha trazido espaço para negociar com mais alguma “profundidade” — o que terá levado António Costa a assegurar que a aprovação estaria mais próxima — os comunistas logo quiseram vir deitar água na fervura e virar o ónus para o PS. Esta quinta-feira, Oliveira já duvidava de se valeria a pena, sem novos sinais do Governo, deixar sequer o documento chegar à fase da especialidade. Resta saber qual das pressões que os parceiros trocam entre si faz mais efeito — e se a pressão da esquerda sobre o Governo vai levar a novas cedências nestes dias finais de negociação.