Há um momento no documentário “The War Is Never Over” (passa este sábado no Doclisboa, repete dia 29) em que perguntam a Lydia Lunch se não tem medo de ser atingida pela vaga cancel culture que tem vindo a marcar como impróprios, artistas com discurso e atos considerados ofensivos. Ela responde qualquer coisa como: “ninguém me cancela porque eu cancelo toda gente primeiro! É a minha vida!”. E a vida de Lydia Lunch é tudo menos convencional.
Lydia Lunch é uma das figuras mais radicais do punk. O facto de ser mulher é apenas um pormenor, mas um pormenor de extrema importância. Lembro-me das primeiras fotos que vi dela, em meados dos anos 80, e de sentir um misto de medo e fascínio. Parecia uma feiticeira, de cabelo espetado e batom carregado, no controle total da sua força e sexualidade, uma dominatrix vinda de um inferno punk, que fazia música intensa e visceral.
Não havia muitas mulheres a dar a cara fora da música pop e entre as que havia, nenhuma se equiparava a Lydia Lunch. Madonna era pop, tinha mais exposição, a sua ousadia e sexualidade eram consideradas chocantes, mas era uma menina de coro comparada com Lydia Lunch, na música e na atitude. Siouxsie Sioux tinha um penteado igualmente carismático e muito mais maquilhagem, mas estava longe de ser tão iconoclasta. Poucos homens, aliás, eram tão extremos como Lydia Lunch. Na altura não era evidente se era apenas um boneco, construído como armadura artística, ou se se tratava de facto de uma baby face killer, como ela própria se autodenomina. A música e os círculos em que se movimentava indicavam que haveria pelo menos alguma verdade em tanta provocação, mas só com o passar do tempo percebi que Lydia Lunch estava mesmo zangada e usava essa raiva de forma extraordinária. Onde os outros ensaiavam uma pose niilista, Lydia Lunch combatia todos os demónios do mundo, ao mesmo tempo que apresentava alguma da arte mais desafiante da época.
[o trailer de “The War is Never Over”:]
Lydia Lunch foi pioneira na No Wave, o braço mais extremo e dissonante do punk de Nova Iorque, uma espécie de anti-rock, empenhado em quebrar todas as regras ao ponto de querer soar inaudível. A cena foi documentada por Brian Eno em 1978, na compilação No New York, com apenas 4 bandas, todas com quatro músicas: DNA, Mars, os Contortions e os Teenage Jesus and The Jerks, banda que Lydia Lunch formou em 1977 com o saxofonista James Chance (dos Contortions) depois de ter visto os Suicide ao vivo. Os Teenage Jesus eram intensos e ruidosos e tiveram vida curta, mas ficaram como uma dos nomes mais importantes do punk/No Wave. Foi com eles que Lydia se revelou e desde então não parou, desdobrando-se em trabalhos a solo (lançou o primeiro álbum em nome próprio, Queen Of Siam, em 1980, o último, Marchesa, em 2018) e todo o tipo de colaborações.
Ao longo dos anos trabalhou com Sonic Youth, Einsturzende Neubauten, Nick Cave, Michael Gira (Swans), Foetus, e muitos outros notáveis heróis do circuito mais underground. Também deixou marca em filmes independentes bastante gráficos, alguns quase pornográficos, fez e continua a fazer espectáculos de spoken word, em que deixa a sua língua afiada discorrer sobre poder, sexo, violência, trauma, politica, feminismo, ecologia, a psique humana e o estado do mundo em geral. É boa com as palavras e impiedosa no discurso, não tem tabus e é quase sempre incendiária. Aos 62 anos continua ativa e relevante, a escrever e dar espectáculos. Consta mesmo que, durante o confinamento, fez dois álbuns que estão prontos para sair. O seu estatuto de diva hardcore da contracultura punk há muito que está solidificado, mas nada como um documentário em que dá a cara para confirmar tudo o que sabíamos, e descobrir um pouco mais.
Lydia nasceu Lydia Anne Coch em 1959. Ficou com o apelido Lunch aos 16 anos, porque roubava comida para ela e para os Mink deVille, banda de quem ficou amiga quando chegou a Nova Iorque em 1976, depois de fugir de casa. Ficou Lunch porque arranjava o almoço. Curiosamente, a relação de Lydia Lunch com a comida é séria, até lançou um livro de receitas, The Need To Feed, mas esse não é assunto abordado em “The War Is Never Over”. O sinal mais íntimo de cuidado com os outros que nos é revelado no documentário é ela a cortar o cabelo dos músicos, aparentemente, algo que faz habitualmente. De resto, nota-se, pelos depoimentos e imagens de concertos e bastidores, que há uma grande intimidade entre ela e os elementos da sua banda atual, Retrovírus. Isso mostra que ela não é só tempestade.
Beth B, realizadora de “The War Is Never Over”, conheceu Lydia Lunch na década de 70, quando ela e o marido, Scott B, se aproximaram dos artistas da No Wave para fazer filmes e documentar toda a agitação artística no então decrépito Lower East Side. Esses e outros filmes independentes da época, bem como filmagens de concertos e fotografias, são amplamente usados. Em certo sentido, este é um documentário clássico sobre música, tem muitas imagens de concertos de Lydia Lunch no passado e no presente, mas também filmagens raras de outras bandas, como os Suicide ou os Mars.
Naturalmente, tem entrevistas a músicos e artistas como Thurston Moore (Sonic Youth), Donita Sparks (L7), o performer Ron Athey, o realizador Richard Kern, o músico e ex-companheiro Jim Thirwell/Foetus ou Nicolas Jaar (produtor e Dj que reeditou o álbum de spoken word Conspiracy of Women, de 1980). Mas, como no universo de Lydia Lunch a vida é indissociável da arte, o documentário vai mais fundo e explora as origens traumáticas das suas forças criativas, tornando-se ele próprio numa espécie de catarse. Vemos Tim Dahl, dos Retrovirus, comover-se enquanto conta a história de humilhação, mutilação e carinho entre Lydia Lunch e um músico de uma banda que ele escolhe não identificar.
Jim Scalavunos (Teenage Jesus and The Jerks, Nick Cave and The Bad Seeds) relembra de forma cândida como perdeu a virgindade com Lydia Lunch (que, aparentemente, exigia sexo a todos os músicos com quem tocava). Lydia, por seu lado, fala dos abusos do pai na infância e de como isso e outros encontros sexuais precoces a ensinaram a ser agressiva, verbal, sexual e filosoficamente, e como esse foi o seu combustível durante muito tempo, certamente no seu início de carreira: “era eu a exorcizar o meu ódio e a minha raiva. Não apenas contra a família, o pai, o pai do país, Deus também… era uma acusação contra a autoridade”, diz quase orgulhosamente.
Quem conhece Lydia Lunch sabe mais ou menos o que esperar, nada do que é revelado em “The War Is Never Over” é propriamente novidade. Ela fala há muito tempo dos abusos sexuais que sofreu e como lidou com eles. Em 1997 lançou uma espécie de autobiografia, Paradoxia, com o expressivo subtítulo Diário de Um Predador, em que explora as suas “motivações” para experiências sexuais transgressoras. Só que hoje a perceção pública de comportamentos sexuais agressivos é diferente e Lydia Lunch, é conhecida por sempre ter sido assertiva quando quer alguma coisa ou alguém. No documentário, vemo-la, num concerto recente, a agarrar a mão de alguém do público e metê-la entre as suas pernas para mostrar como se “sente”. Estará a passar alguma linha moral? Provavelmente. Lydia Lunch não tem pudor, é a primeira a admitir que conseguiu ser uma “predadora bem sucedida”, formada num ciclo de abuso e violência.
“The War Is Never Over” é forte sob vários aspetos, mas não manipula, nem explora emocionalmente quem vê, não procura o choque. Conta uma história complexa de uma mulher invulgarmente forte e confiante, artisticamente inspiradora, que encontrou saídas extremas para um desarranjo profundo.
Thurston Moore tem a definição mais contundente quando fala dos tempos em que a conheceu em meados dos anos 70: “não havia nada mais perigoso do que Lydia Lunch”. Somando criação artística e comportamento pessoal, 40 anos depois, Lydia Lunch deve continuar na lista das pessoas mais perigosas do mundo. E a guerra ainda não acabou.