Quando em 1994 Johny Cash lançou American Recordings o mundo teve um reação surpreendente: foi ouvir, coisa que não acontecia a Cash desde final da década de 60. Cash estava então com 62 anos, havia levado uma vida de excessos (álcool e drogas à cabeça) e por alguma razão estávamos conscientes de que aquele podia ser o último disco de Cash – em certa medida, a reação efusiva a American Recordings pode ser entendida como uma última homenagem a Cash.
Mas a série American não ficaria por aí: Cash, apesar de gradualmente mais doente, ainda lançou American II: Unchained (1996), American III: Solitary Man (2000), American IV: The Man Comes Around (2002), falecendo em 2003. Das sessões gravadas para a série American resultaram ainda dois discos póstumos, American V: A Hundred Highways (2006) e American VI: Ain’t No Grave (2010).
O que impressiona na série é a transformação de Cash: outrora um pioneiro incendiário do rock’n’roll firmemente enraizado na folk, o bardo, em final de vida, criava então um som que era pura folk descarnada, adulta, que olhava de frente as dores da idade, do envelhecimento, os arrependimentos, a procura de redenção.
[“Anjos Tronchos”:]
Não é exagerado dizer que alguns dos discos da série American estão entre os melhores de Cash – e não é exagerado dizer que isto é muito raro na música popular: Randy Newman nunca parou de fazer grandes discos, Dylan criou uma obra-prima aos 56 (Time Out of Mind, de 1997) e aproximou-se da melhor forma aos 71, com Tempest (2012), mas é difícil defender que Leonard Cohen tenha feito um grande disco depois de The Future (de 1992), tal como é difícil defender, por mais simpatia que lhes tenhamos, que Bowie ou Prince se tenham mantido relevantes depois das suas melhores fases.
Por entre os intérpretes de língua portuguesa, o melhor exemplo de bem envelhecer é o de José Mário Branco, que aos 62 anos editou o extraordinário Resistir É Vencer, de 2004. O genial Tom Zé lançou Tropicália Lixo Lógico em 2012, com 76 anos – e, de novo, isto são casos excecionais. Com a idade vai-se, por norma, lançando menos discos e por vezes nota-se a falta de ideias frescas.
E agora chegou a vez de irmos a correr ouvir Caetano porque não sabemos se esta será a última vez: o criador do tropicalismo está com 79 anos e Meu Coco, acabado de lançar, é o seu primeiro disco de originais desde Abraçaço, de 2012. Se quisermos ser muito frios na análise, desde 1998 (Livro) ou 2000 (Noites do Norte) que Caetano não lança um grande disco de originais – entre eles houve Prenda Minha (de 1999), disco ao vivo que não trazia canções novas, mas que parecia ter uma existência única, muito por força dos arranjos cuidados, criados para aquele espectáculo em particular.
[“Cobre”:]
Ninguém sabe quando a criatividade decide ir-se embora, ninguém entende porque é que há alturas em que um autor dá um chuto numa pedra e de baixo sai uma obra-prima, ou espirra e o espirro acaba no MoMa. Com Caetano houve períodos impressionantes de imaginação e prodígio – na década de 1990 todos os discos de originais (Circuladô, de 1991, Tropicália 2, de 1993, com Gilberto Gil, Fina Estampa, de 1994, Livro, de 1998 e Noites do Norte, de 2000) são um achado, bem como os discos ao vivo, em que Caetano mudava radicalmente as canções: Circuladô ao Vivo, de 1992, Fina Estampa ao Vivo, de 1994, Prenda Minha e Omaggio a Federico e Giulietta, de 1999, são todos discos tão meticulosamente pensados e arranjados que ocupam lugares tão importantes na discografia de Caetano como os mais bem conseguidos dos seus discos de originais.
Caetano Veloso no Coliseu dos Recreios: o mundo é bonito só com voz e violão
Quando o século virou já Caetano tinha sido muita coisa: no final da década de 60 foi um dos fundadores do Tropicalismo, um movimento de abertura cultural que cruzava as raízes da música brasileira com as influências externas, nomeadamente o rock – um movimento eternizado nesse disco-monumento que foi Tropicalia ou Panis et Circencis, de 1968, que ainda incluía Gal Costa, Gilberto Gil, Nara Leão, Os Mutantes e Tom Zé.
As suas aventuras seguintes teriam outros contornos: a ditadura censurou-o várias vezes, Caetano tornou-se mais político, foi preso e acabou exilado em Londres, onde de resto conheceu (e ficou a admirar) Zeca Afonso. Foi lá que Caetano criou uma obra mítica, Transa, em que levou ao limite a sua capacidade de sintetizar o rural brasileiro e o sofisticado estrangeiro. Mas o exílio traz as duas dores e durante décadas e décadas, mesmo já regressado ao Brasil e aí celebrado, Caetano recusou-se a tocar uma canção que fosse de Transa.
[“Sem Samba não Dá”:]
Transa inaugurou uma época de experimentalismo que foi seguida com o enigmático Araçá Azul, que foi mal recebido ao ponto de o número de devoluções ter praticamente igualado o número de vendas – e, no entanto, a canção homónima ao disco era um milagre de minimalismo e fé: “Com fé em Deus / Eu não vou morrer tão cedo / Araçá azul é brinquedo”, cantava Caetano, e era impossível não acreditar nele.
No final da década de 70, entre falhanços comerciais e o ocasional torcer de nariz da crítica, Caetano começou a debitar êxitos: “Tigresa” fez sucesso na versão de Gal Costa, “Sampa”, a homenagem à cidade de São Paulo, tornou-se um clássico, “Menino do Rio” (que também foi sucesso noutra voz, antes de Caetano a regravar em seu nome) “Beleza Pura”, que na época explodiu. Um disco, Caetano e Chico Juntos e Ao Vivo (a meias com Chico Buarque, como fica óbvio pelo título) demonstra a quantidade de grandes canções, êxitos imediatos, que Caetano já acumulara.
Mas seria na década de 1980 que Caetano se tornaria mobília insubstituível no panorama da música popular brasileira, graças a uma série de discos que atingiram o galardão de ouro: Cinema Transcendental, de 1979, Outras Palavras, de 1981, Cores, Nomes, de 1982, Uns, de 1983, Velô, de 1984. Mais uma vez, houve um disco ao vivo que marcou a década, o extraordinário Totalmente Demais, de 1986.
[“Você-Você”, com Carminho:]
Repescando o início da conversa: a década de 90 foi extraordinária, e citando um poeta, “se quisermos ser muito frios na análise, desde 1998 (Livro) ou 2000 (Noites do Norte) que Caetano não lança um grande disco de originais – entre eles houve Prenda Minha (de 1999)”, o que nos deixa sempre na expectativa de ser desta.
O Caetano de Meu Coco é um Caetano político, nada preocupado em ser subtil, declaradamente anti-Bolsonaro (como aliás já o é no dia a dia), sem que se isso se traduza em música mais agressiva – antes pelo contrário, Meu Coco é dos discos mais sossegados, lentos e silenciosos que Caetano editou, com ocasionais exceções numa ou noutra canção.
O tema homónimo lembra um pouco Prenda Minha, pelos arranjos com ocasionais metais e esse cuidado com os arranjos mantém-se em “Ciclâmen do Líbano”, em que cordas de inspiração árabe sublinham a voz e o violão. Ao terceiro tema, “Anjos Tronchos”, surge pela primeira vez uma guitarra elétrica – em power chords, mas sem que isso provoque algum motim (o próprio refrão é muito calmo).
[ouça “Meu Coco” na íntegra através do YouTube:]
Até ao fim haverá bossa, um fado (“Você-Você”, com Carminho, um fado assim-assim), mais melodias bonitas e calmas e violão e ocasionais cordas – tudo elegante, tudo respeitável, tudo muito chá à lareira, nada que ofenda a nossa avó ou provoque espasmos nas costas ou desarrume a casa.
Meu Coco acaba por soar um pouco como uma versão menos luxuosa de Prenda Minha, um disco ao vivo, que reunia temas de várias partes da carreira de Caetano, bem como versões, e as transformava sob o signo das big bands, adornadas por arranjos mais preciosos que o teto da Capela Sistina. Aqui os arranjos estão ao nível de um T3 no Chiado, o que é bom, mas não é ótimo. Falta explosão, refrões inesquecíveis, aquela doçura muito de Caetano, que nos derrete, a sensualidade natural da sua voz adormecida por melodias que não sobem acima do bonito.
A parte boa disto tudo? Agora Caetano tem mesmo de ficar saudável para criar o novo disco de originais admirável que esperamos há uns anos.