O antigo ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio, o psiquiatra Daniel Sampaio, a socióloga Ana Nunes de Almeida, a assistente social Filipa Tavares e a cineasta Catarina Vasconcelos vão fazer parte da comissão independente que vai investigar a história dos abusos sexuais de menores na Igreja Católica em Portugal, anunciou esta quinta-feira o coordenar desta estrutura, o pedopsiquiatra Pedro Strecht, num discurso em que apelou “a todas e todos quanto possam ter sido vítimas destes crimes hediondos para que falem” e para “que relatem, finalmente e sem medo, o que lhes aconteceu”.
“Durante o decurso do tempo de intervenção desta Comissão, podem vir a ser integrados mais profissionais cuja intervenção especializada se revele fundamental em diversas etapas do trabalho a realizar”, explicou ainda Pedro Strecht, numa conferência de imprensa esta quinta-feira em que foram apresentados os detalhes da nova Comissão Independente para Estudo dos Abusos de Menores na Igreja (CIEAMI).
“A Comissão definirá o seu tempo e método de atuação, com recolha e tratamento de depoimentos, informação documental e outros dados de relevo obtidos através de metodologias distintas, bem como elaboração e apresentação pública de um Relatório, balizando-o durante o ano civil de 2022 (de janeiro a dezembro), salvo o surgimento de condicionantes de exceção que poderão vir a ditar o alargamento deste prazo“, acrescentou o coordenador da comissão.
A criação desta nova comissão foi inicialmente anunciada pela Conferência Episcopal Portuguesa no dia 11 de novembro, no final de uma assembleia plenária que juntou, durante quatro dias, todos os bispos portugueses em Fátima para debater a crise dos abusos sexuais de menores na Igreja Católica.
Na altura do anúncio, D. José Ornelas tinha recusado avançar com pormenores sobre a atuação da nova comissão, argumentando que caracterizar a comissão antes de serem conhecidos os seus membros seria “condicioná-la” à partida.
A decisão de criar uma comissão destinada a fazer um apuramento de caráter histórico da crise dos abusos sexuais de menores na Igreja Católica em Portugal surge quase três anos depois de uma cimeira global convocada pelo Papa Francisco para debater o tema, de urgência, com bispos de todo o mundo no Vaticano. Desde essa altura, foram criadas comissões deste género em vários países, mas os bispos portugueses foram sempre adiando a possibilidade de seguir o exemplo, argumentando que o problema não tinha, em Portugal, dimensão suficiente para merecer esse estudo.
A publicação, no início de outubro, do relatório final da comissão francesa (que estimou em mais de 300 mil os casos de abuso de menores às mãos da Igreja Católica nos últimos 70 anos) trouxe o tema de volta ao centro da agenda mediática — e multiplicaram-se os apelos para que também os bispos portugueses abrissem os seus arquivos em busca da história desta crise em Portugal.
A escolha do coordenador recaiu sobre o pedopsiquiatra Pedro Strecht, um dos mais conceituados profissionais portugueses nesta área. Na conferência de imprensa desta quinta-feira, Strecht salientou que o sucesso do trabalho dependerá da capacidade que a Igreja tiver para assegurar às vítimas que podem ter confiança para partilharem as suas histórias.
“O encorajamento para depoimento das vítimas requer um habitualmente longo tempo de espera e conquista de confiança para que estas sintam que a sua palavra é importante para relatar experiências traumáticas das suas vidas passadas, minorando ainda agora danos psicossociais importantes, tal como sentimentos comuns de zanga, raiva e, sobretudo de desproteção e injustiça face a membros a Igreja católica, outros adultos de proximidade e até da sociedade em geral”, disse Pedro Strecht.
“Por isso, apelamos desde já a todas e todos quanto possam ter sido vítimas destes crimes hediondos para que falem. Que relatem, finalmente e sem medo, o que lhes aconteceu. Mesmo perante naturais hesitações, completamente aceitáveis diante de situações sobre as quais podem ter passado décadas, tocando agora em assuntos que não desejam voltar a fazer emergir, por favor, confiem na vossa voz interior e na utilidade de a partilhar para que nada de semelhante possa continuar a acontecer”, acrescentou.
“Não podemos mudar o passado, mas podemos sempre construir um futuro melhor e livre da repetição deste tipo de situação junto dos vossos filhos, netos ou simplesmente de todas as crianças e adolescentes em que certamente podemos rever partes de nós mesmos.”
Sucesso do estudo depende da “capacidade colaborativa” da Igreja, avisa coordenador
Na conferência de imprensa, o coordenador da comissão explicou que a estrutura pretende seguir os lemas “Dar voz ao silêncio” e “Conhecer o passado, planear o futuro”, e reiterou que os testemunhos das vítimas serão fundamentais para pintar um retrato tão fiel quanto possível desta crise em Portugal. “Garante-se desde logo um absoluto respeito e sigilo pessoal e profissional sobre a história de vida traumática de toda e qualquer pessoa que nos venha a contactar“, assegurou.
O médico pedopsiquiatra garantiu que a comissão se organiza “de forma autónoma e independente da própria Igreja católica, bem como de todo o tipo de outros credos ou religiões, raças e etnias, géneros e identidades”.
Mas Pedro Strecht também deixou um recado à própria Igreja Católica. “A Comissão está consciente de que o trabalho que a espera e respetivos resultados finais não têm qualquer a priori e estão, de igual modo, dependentes da própria capacidade colaborativa da Igreja Católica Portuguesa e ainda de todas as Comissões Diocesanas criadas em Portugal desde 2019″, afirmou.
O coordenador da comissão de estudo elogiou estas comissões, salientando que se têm “empenhado” no combate aos abusos nas 21 dioceses católicas portuguesas, juntando “profissionais de áreas muito diversas, com postura válida e isenta” — e pediu “que se continuem a empenhar na facilitação de contactos para pessoas, instituições ou outros grupos que em todo o País possam e queiram associar-se transversalmente numa rede de fornecimento de dados para recolha de informação de relevo, nem que seja “impelidos pela dor e pela vergonha de não terem sido boas guardiãs dos menores que nos foram confiados”, como também escreveu o Papa Francisco.
“Em Portugal, nos últimos tempos e tal como em diversos países, registou-se uma saudável onda de indignação, movida pela procura de uma verdade histórica, sobre o que poderá ter acontecido a um número incontável de menores no campo dos abusos sexuais em diversos contextos da sociedade, em especial no seio da própria Igreja Católica, numa visão que o seu próprio representante máximo, Sua Santidade o Papa Francisco, tem vindo a pedir sucessivamente para ser objeto de clarificação inequívoca”, destacou Pedro Strecht.
“É para isso que aqui estamos, neste momento, a dar início a um trabalho que naturalmente se prevê complexo, longo, difícil de definir quanto a resultados finais, mas que verdadeiramente teria que ser feito”, acrescentou.
Comissão vai ter contactos publicamente disponíveis
Pedro Strecht assegurou que “a comissão espera o suporte da comunicação social na eventual referenciação de situações ainda atuais ou do passado, deseja a existência de investigação jornalística útil ao tema e divulgação de canais de contacto que em janeiro serão postos à disposição de todos quantos queiram reportar o seu passado traumático“.
“As redes sociais oferecem boas oportunidades de acesso a todas as pessoas anónimas que deseja ver colaborarem na revelação deste objeto de estudo, pelo que teremos certamente um contacto telefónico disponível, um e-mail para os que preferirem essa forma de contacto e uma página de internet recordando quem somos e o que fazemos“, explicou o coordenador.
No verão de 2022, a meio do processo de estudo, a comissão vai realizar um briefing para dar conta dos progressos que conduzirão à publicação de um relatório final até ao fim do ano.
Pedro Strecht afirmou ainda que a comissão terá um espaço físico “autónomo” da Igreja Católica e que a estrutura “não se substitui às entidades jurídicas competentes perante a revelação de casos cujos crimes não se encontrem ainda prescritos (até por este tipo de crime é de natureza pública e o prazo da sua prescrição mudou), nem às estruturas de saúde mental existentes em situações de manifesta necessidade de apoio emocional”.
Igreja quer reconhecer “erros estruturais do passado”
No arranque da conferência de imprensa, o bispo de Setúbal, D. José Ornelas, que é o atual presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, reconheceu que, “nos últimos decénios, a sociedade em geral, no seguimento de novas evidências científicas que mostraram as dramáticas consequências dos abusos de pessoas na etapa infantil e juvenil das suas vidas, foi tomando consciência de quanto de injusto, cruel e inumano foi cometido sobre tantas pessoas, na sociedade e nas suas instituições“.
“Os últimos papas, com relevo para o atual, o Papa Francisco, foram movendo a Igreja, na sua totalidade, a tomar consciência deste problema no seu seio, reconhecendo erros estruturais do passado, enfrentando a realidade atual e, sobretudo, criando os pressupostos para uma transformação de atitudes e mentalidades que contrariam aquilo que a comunidade cristã é chamada a ser, como expressão da dignidade, justiça e cuidado a que todas as pessoas têm direito, particularmente nas fases mais frágeis da sua vida”, acrescentou o bispo.
“Posso afirmar, com toda a clareza, que é essa realidade que pretendemos conhecer, nas suas dimensões, mas também e sobretudo nos dramas que esconde, a fim de que que se possa ir ao encontro das pessoas que sofreram estes dramas, oferecendo a oportunidade de ter vez e voz, para verem reconhecida a sua justiça e a sua dignidade”, destacou D. José Ornelas. “É por essas pessoas que empreendemos este caminho e elas são a razão de ser fundamental da Comissão.”
O bispo salientou que Pedro Strecht teve “a liberdade de escolher a equipa que hoje anuncia” e garantiu que a Igreja Católica dará à comissão “todo o apoio necessário”.