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A Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), órgão máximo da Igreja Católica em Portugal, anunciou esta quinta-feira que vai criar uma comissão independente para “fazer o estudo em ordem ao apuramento histórico” da questão dos abusos sexuais de menores cometidos por membros do clero.

A decisão foi anunciada esta quinta-feira em conferência de imprensa pelo porta-voz da CEP, padre Manuel Barbosa, e surge no final de uma reunião plenária de todos os bispos portugueses, que decorreu em Fátima nos últimos quatro dias. Na mesma conferência de imprensa, o presidente da CEP, D. José Ornelas, reiterou que a Igreja não tem medo de conhecer a verdade e que fará “tudo” para a apurar — uma evolução considerável face ao posicionamento da Igreja portuguesa sobre o assunto até agora.

A decisão de criar um grupo para estudar a história da crise dos abusos sexuais de menores na Igreja em Portugal surge depois de um relatório sobre o assunto publicado em França ter espoletado o debate em torno do assunto e motivado apelos aos bispos portugueses para que seguissem o exemplo e também nomeassem uma comissão para estudar o que se passou na Igreja portuguesa nas últimas décadas — algo que os bispos portugueses recusaram, até hoje, fazer.

Esta semana, um grupo de católicos (incluindo várias figuras públicas) enviou uma carta aberta à CEP apelando a uma investigação sobre o passado.

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“Reconhecendo o trabalho das comissões diocesanas, constituídas especialmente por leigos qualificados em várias áreas como o Direito, a Psiquiatria e a Psicologia, a Assembleia decidiu criar uma comissão nacional para reforçar e alargar o atendimento dos casos e o respetivo acompanhamento a nível civil e canónico e fazer o estudo em ordem ao apuramento histórico desta grave questão“, diz o comunicado final da Conferência Episcopal Portuguesa.

Nesse sentido, é constituído um ponto de escuta permanente a nível nacional“, acrescenta.

Esta era uma possibilidade que o Observador já tinha avançado no final de outubro, depois de uma ronda de contactos com vários bispos portugueses.

Todas as dioceses portuguesas têm desde 2020 em funcionamento comissões diocesanas de proteção de menores, que agora passam a ser coordenadas por esta nova comissão nacional.

Em conferência de imprensa, D. José Ornelas, o bispo de Setúbal, assegurou que os membros da futura comissão ainda vão ser nomeados, mas acrescentou que pretende que a comissão tenha independência para criar processos e mecanismos próprios para agir.

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Não temos medo, bem pelo contrário“, disse D. José Ornelas. “A comissão vai gozar de real independência para investigar as coisas.”

O bispo de Setúbal, que preside atualmente à CEP, não quis dar detalhes sobre a comissão nacional, argumentando que caracterizar a comissão seria “condicioná-la” à partida. “Não queremos, de modo nenhum, condicionar pela negativa o trabalho desta comissão. Queremos que chegue ao fundo das questões.

D. José Ornelas vincou que a comissão deverá ser pautada por uma “busca intransigente da clareza” sobre o assunto.

Sobre o perfil dos membros da comissão, D. José Ornelas disse que deverá seguir o perfil dos membros das comissões diocesanas de proteção de menores, que incluem juízes, magistrados, polícias, psiquiatras, psicólogos e outros especialistas. “Uns são cristãos, outros não são“, disse, quando questionado sobre a real independência da comissão. “É nosso desejo que se componha um grupo com estas características. Não vai ser a Conferência Episcopal a controlar esta comissão.”

Questionado pelos jornalistas sobre o âmbito da comissão, o período histórico que será estudado e a disponibilidade da Igreja Católica para ceder os seus arquivos, D. José Ornelas concedeu que, naturalmente, o estudo vai depender da memória de quem ainda está vivo — mas não quis fixar qualquer limite, como por exemplo o de 50 anos já sugerido. “Se uma pessoa vem denunciar uma coisa com 51 ou 52 anos, não vamos limitar.

“Queremos uma dimensão histórica de tudo isto”, disse D. José Ornelas, garantido que a Igreja está preparada “para tudo” e que fará “tudo o que for preciso” — incluindo disponibilizar os arquivos — para chegar à verdade histórica. Ainda assim, o bispo de Setúbal advertiu para a cautela que deve imperar ao lidar com os números e as estatísticas.

“É evidente que os números são importantes para dar dimensão, mas não se escutam os números, escutam-se as pessoas. Quem já contactou com pessoas deste género, que sofreram traumas dramáticos, sabe que estas pessoas não gostam de ser tratadas como números“, afirmou. “O mais importante é que qualquer pessoa que significa um número destes encontre justiça, acolhimento e apoio.”

Sobre as metodologias a ser seguidas, e quando questionado sobre se serão comparáveis a casos internacionais conhecidos (como França, Austrália, Alemanha ou Irlanda), D. José Ornelas salientou que em todos os países onde isto sucedeu foram seguidas metodologias diferentes e que no caso português a futura comissão terá liberdade para identificar os melhores procedimentos a adotar.

Questionado sobre se a comissão irá apenas estar disponível para receber denúncias ou se irá, ativamente, em busca de casos no passado, D. José Ornelas reiterou apenas que as metodologias serão definidas pela comissão que será criada.

Temos muita pena e custa-nos muito tratar este assunto“, afirmou D. José Ornelas. “Mas temos todo o interesse.”

O bispo de Setúbal também não quis antecipar qualquer expectativa sobre o número de casos que poderá vir a ser desenterrado dos arquivos da Igreja. “Vamos analisar com realismo“, disse, recusando “fazer deduções”.

Questionado sobre se a decisão foi tomada por unanimidade, D. José Ornelas afirmou que todos os bispos concordaram com a necessidade de criar este organismo — e recusou comentar os casos dos bispos que, em 2019, consideraram desnecessário criar este tipo de estruturas, como o bispo do Porto, D. Manuel Linda, que disse que criar uma comissão para estudar os abusos fazia tanto sentido como criar uma comissão para estudar a queda de meteoritos na cidade.

D. José Ornelas assegurou ainda que está “em preparação” uma reunião com todas as comissões diocesanas para o lançamento desta nova comissão, que deverá ocorrer “o mais rápido possível” — mas sem pressas que resultem em precipitação, advertiu o bispo.