Segundo a Organização Mundial de Saúde, em todo o mundo, existem mais de dois milhões de pessoas diagnosticadas com Esclerose Múltipla. Entre elas, mais de 8 mil estão em Portugal. Esta doença crónica surge quando, por razões ainda não totalmente conhecidas, ocorre a destruição da mielina, uma camada de gordura que reveste as fibras nervosas. Este processo, chamado desmielinização, provoca a inflamação dos nervos, o que prejudica a transmissão das correntes nervosas entre eles, comprometendo a ação do cérebro e da medula sobre o funcionamento do nosso corpo. Este sábado, 4 de dezembro, assinala-se o Dia da Pessoa com Esclerose Múltipla, data assinalada em Portugal desde 2006 para chamar a atenção para a doença e para todos os que sofrem com ela.

Surtos e fase secundária

A Esclerose Múltipla (EM) manifesta-se por surtos que podem passar espontaneamente ou pela administração de corticoides. Inicialmente, entre estes episódios surgem fases de remissão, sendo a forma surto-remissão a evolução mais frequente, segundo Maria José Sá, Neurologista e especialista em Doenças Desmielinizantes. Mais tarde, cerca de metade dos doentes, 15 anos após o primeiro surto, progride na chamada fase secundária progressiva, cuja característica mais marcante é a perda de capacidade. Além dos surtos, os sintomas podem surgir sob a forma de dores, depressão, défice cognitivo, ou fadiga, além de outros que podem ser atenuados ou até mesmo desaparecer. Mas há sempre esperança.

”Felizmente, também existem os outros 50% de pessoas, que se mantém mais tempo na fase menos incapacitante, de surto-remissão. Alguns até deixam de ter surtos e conseguem ter uma vida ativa, trabalham, constituem família. Ou seja: mesmo sendo portadores da doença, muitas pessoas levam uma vida praticamente normal”, conta a especialista, que chama a atenção para a importância de um diagnóstico o mais precoce possível, de forma a dar início ao tratamento. Porque, ainda  que a doença ainda não tenha cura, pode conseguir-se impedir — ou mesmo travar — a sua progressão.

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Não foi o que aconteceu com Rosa Neto, que teve o primeiro surto de Esclerose Múltipla aos 17 anos, em 1990. Na altura, foi ao médico de família procurar solução para os seus sintomas: visão dupla no olho esquerdo e uma grande fraqueza. O médico desvalorizou, dizendo que seria enxaqueca e não havia nada a fazer, mas a doença mantinha-se. Rosa teve de ficar de baixa várias vezes mas, mal se sentia melhor, voltava para a fábrica de confeção onde trabalhava com várias máquinas, cada vez mais impossíveis de operar dada a sua falta de força, a visão dupla e as dores fortes, quase diárias, que sentia.

Sintomas ignorados

“Havia dias em que eu tomava uma caixa inteira de analgésicos, tais eram as dores de cabeça”, conta Rosa. Insistia com o seu médico de família, que lhe dizia serem enxaquecas e talvez falta de vontade de trabalhar. Assim, passaram-se dez anos. Rosa casou, teve um filho e a doença não cessava de lhe limitar a capacidade de desempenhar tarefas tão simples como preparar um biberon. “Como via a dobrar, pensava que estava a deitar o leite no biberon, mas caía tudo na mesa”. Valia-lhe o marido, sempre pronto a ajudá-la, possivelmente a sofrer tanto como Rosa por causa daquele estado de saúde. Um dia, uma amiga recomendou-lhe um médico, em Lousada, garantindo que a ajudaria. Foi aí que tudo começou a mudar.

Diagnóstico para a vida

O médico, Carlos Pacheco, identificou a doença assim que ouviu os sintomas que Rosa descreveu. Antes de se pronunciar, pediu os exames que confirmaram a notícia. “O Doutor explicou-me tudo, a mim e ao meu marido, e disse que eu teria de ir para o Hospital de São João fazer mais exames”, diz Rosa. No entanto, dado o terrível sofrimento em que Rosa se encontrava, o casal já tinha marcado uma consulta noutra clínica particular, coincidentemente com Maria José Sá, especialista em esclerose múltipla, que também trabalha no Hospital de São João, chefiando a consulta de Doenças Desmielinizantes, o grupo de Neuroimunologia, o Hospital de Dia, e o Laboratório de Neurologia.

Infografia: Joana Figuerôa

Rosa Neto deu entrada no hospital para exames mais detalhados mas, ao mesmo tempo, iniciou o tratamento. “E parou. A doença parece que parou. Continuei com pouca força mas deixei de ter dores. A visão dupla também melhorou bastante. Agora, é só num ponto”. A voz de Rosa torna-se mais alegre à medida que vai falando da sua vida depois de começar a medicação no ano 2000. Por terem passado quase dez anos desde o primeiro surto, a doença deixou sequelas, mas toda a sua condição melhorou. Aprendeu a viver com a doença, a integrar algumas limitações e a gerir a dor “Quando tenho dores de cabeça saio de casa, vou cuidar dos animais ou da horta”, conta. É seguida também em psiquiatria (uma das consequências da esclerose múltipla são as depressões) e tem no marido e no filho o seu grande suporte.

Atrasar ou parar a evolução da doença

Maria José Sá, lembra-se de quando ainda não havia qualquer medicação para a esclerose múltipla e “tudo o que nós, médicos, podíamos fazer, era administrar corticoides como forma de contrariar os surtos e vitaminas para reforçar o sistema imunológico”. Em 1996, quando o primeiro medicamento foi lançado em Portugal, começou uma autêntica mudança de paradigmas e procedimentos. Primeiro que tudo, como explica a neurologista na qualidade de vida do doente. Ao atuar nos mecanismos imunitários que estão subjacentes a esta doença, o tratamento atrasa a sua evolução e até a pode fazer parar, no sentido de não haver mais surtos. Contribui, assim, para que a doença não se manifeste de todo ou o faça de forma mais ligeira.

“Hoje sabemos que uma doente com esclerose múltipla pode ter filhos e que, muitas vezes, as mulheres até melhoram durante a gravidez”, revela Maria José Sá.

O primeiro a aparecer

O tratamento, o primeiro de sempre, deu origem a mudanças nos procedimentos clínicos, como a criação de equipas especialistas em esclerose múltipla nos hospitais, o que constituiu um passo em frente na neurologia. Maria José Sá lembra-se de ir aos congressos e de ser “tudo novo, do tratamento à relação com o doente que passou a ser visto como um parceiro e também o gestor da sua própria doença.”.

Quanto mais cedo melhor

A experiência clínica é que, quanto mais cedo a doença for diagnosticada e, por conseguinte, acompanhada, menos ela se manifesta. Não foi o que aconteceu com Rosa Neto. “É importante não desvalorizar os sinais”, diz Maria José Sá. Porque, por vezes, há sintomas que passam despercebidos como uma alteração visual ou uma falta de sensibilidade que desaparecem em apenas alguns dias.

“Sobretudo em pessoas mais novas, com cerca dos 20 anos ou até antes, há que estar atento e procurar o médico. Se houver casos na família, embora esta doença não seja hereditária, há que ter ainda mais atenção”, alerta a médica, que refere ainda os fatores ambientais como causas para o aparecimento da doença: falta de vitamina D, tabagismo e sedentarismo. Que, aliás, são três fatores que o doente deve vigiar, pois ajudam a que o sistema imunológico esteja mais forte, logo, menos sujeito a surtos. E, enquanto a ciência não traz a cura absoluta para a esclerose múltipla, muitos doentes em todo o mundo sentem que a sua doença os limita menos graças aos tratamentos e por terem uma vida cada vez mais normal e melhor.