Talvez a passagem voraz de décadas, acompanhada por uma nova era dourada da televisão, nos tenha feito esquecer o óbvio: “Sexo e a Cidade” é uma das séries mais importantes da viragem do século. E sim, acabei de ver alguns de vocês a revirarem os olhos com tanta rapidez que até estalaram o globo ocular. Não estranho e não censuro. A máquina de marketing que se montou em torno da comédia dramática sobre quatro amigas e o seu apetite sexual também terá contribuído para essa espécie de ranço que se foi levemente depositando na criação de Darren Star.
A galvanização dos sapatos Manolo Blahnik, do brunch de domingo (instituição entretanto banalizada até por cá), do ir a Manhattan com as ‘migas forever, dos testes da Cosmopolitan para vermos se éramos mais Carrie ou mais Samantha (Charlotte é que nunca, chiça) — tudo isto contribui para tornar “Sexo e a Cidade” numa marca poderosa, mas talvez no meio de todo este glamour inchado a ração tenhamos olvidado o essencial. É que os episódios eram mordazes, inteligentes e, para os padrões de 1998, revolucionários. Não se falava de sexo desta maneira, pelo menos não do sexo numa ótica do utilizador feminino. Os detratores da série preferiram encarar de modo caricatural um programa de televisão que era mais do que aparentava, mas que não resistiu a deixar-se engolir por mais uma oportunidade de vender merchandising.
O maior problema talvez até tenham sido os tenebrosos dois filmes que resultaram à posteriori. A série disse adeus em 2004, mas apareceu de novo — qual vilão de filme de terror que afinal ainda punha a mão de fora da tumba — em 2008 e 2010, com longas-metragens criativamente chamadas de “Sexo e a Cidade” e (aguentem os vossos corações) “Sexo e a Cidade 2”. Não hesito em considerar que ambos estão no Top 5 dos piores momentos que já passei numa sala de cinema, incluindo a vez que tive de fugir de um senhor sem calças e a vez em que só metade do ecrã funcionava.
[o trailer de “And Just Like That”:]
https://www.youtube.com/watch?v=Cy8Zz7Q56dY
As experiências cinematográficas não eram mais do que robots sem alma, com único objetivo de juntarem grupos de amigas para irem juntas desfrutar de uma girls night. Os guiões pareciam, esses sim, escritos em modo de caricatura manhosa feita num paredão turístico. A série era desbragadamente para maiores de 18 (por cá, passou na SIC com bolinha no canto e a desoras); os filmes eram pipocadas para Maiores de 13. Se é para ir ver um filme com crianças na sala, prefiro os da Pixar.
Foi por isso que reagi a este “And Just Like That” com mais desconfiança do que quando toxicodependentes me tocam à campainha de casa a fingirem ser funcionários da Junta. Fui muito fã da série, muito detratora dos filmes e estava bem assim. Nem sequer tenho vontade de rever as seis temporadas originais, por medo de termos envelhecido mal — eu e os episódios. Dos 10 tomos novos agora prometidos, a HBO estreou já dois, sendo depois a cadência semanal. E o primeiro impacto foi de que os criadores da série, provavelmente, sabem que há mais gente com o meu estado de espírito e estão prontos para nos acomodarem. “And Just Like That” é para os fãs que nunca se foram embora, mas também para os ocasionais e para os desertores. Só não é para quem nunca viu Carrie Bradshaw e companhia, talvez por até ter nascido depois do auge. É preciso conhecimento prévio deste universo, mesmo que as constelações estejam agora diferentes.
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Começando com uma espécie de remix sonoro do tema original (e que a tantos toques de telemóvel polifónicos deu origem) e com uma boca ao período de pandemia (“lembras-te de quando tínhamos de ficar a 2 metros uns dos outros? Saudades…”), o primeiro minuto do primeiro episódio avança destemidamente para a questão mais falada deste regresso: então e a Samantha? Foi muito pública a recusa de Kim Cattrall em regressar ao seu papel mais icónico, justificando-se com uma guerra antiga com a protagonista Sarah Jessica Parker. A falta de Samantha, explicada por uma zanga e uma ida para Londres, acaba por ser um subplot do episódio de estreia, mostrando assim como “And Just Like That” está ao serviço das angústias dos fãs.
Talvez também por isso, esta nova série acaba por tentar colmatar uma crítica recorrente aos episódios originais: a falta de representatividade das personagens, que se limitava a mulheres brancas. Entre as novas aquisições está a não-binária Che Ramirez (colega de podcast de Carrie) e a negra Nya Wallace (professora de Miranda, que muito se atrapalha ao tentar esconder a sua síndrome de white saviour), por exemplo. Mas não é por isso que o episódio de estreia não tem também os clássicos, do melhor amigo gay Stanford (o actor Willie Garson entretanto morreu) à conversa desbocada durante um brunch com álcool. Fala-se de cabelos brancos, de sémen de filhos adolescentes, de instagram e de como os podcasts passaram a ser uma espécie de obrigação.
“And Just Like That” é uma série sobre envelhecer. Sobre um grupo de amigas que chocavam, mas que agora ficam chocadas. Sobre como pairar numa sociedade woke sem se tornar num meme. O nome mudou, e de facto há menos sexo (explícito) e menos cidade (Nova Iorque é menos personagem do que já foi). É sobre como as coisas que mudam, algumas discretamente até darmos de facto por elas, outras de repente. O final do primeiro episódio é, aliás, um grande evento dentro da série que acarreta consigo uma mudança de paradigma.
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Se precisávamos todos de mais um regresso, numa altura com tantas séries de excelência e onde os comebacks cheiram sempre a bafio e a dólares? Não, não precisávamos. Mas tendo chegado até aqui, “And Just Like That” é um regresso feito com graça e elegância, onde o tom original da série se reencontra e se abrem portas a narrativas e questões interessantes. Será consumido por fãs e ignorado pelos restantes, o que já não é nada mau em termos de base de apoio. Podem fazer mais, desde que me prometam que não as voltam a enfiar num filme pavoroso e um niquinho racista em Abu Dhabi.