As queixas apresentadas à provedora de Justiça vão registar um “novo recorde histórico” em 2021, adiantou Maria Lúcia Amaral, segundo a qual a pandemia agravou problemas existentes, atenuados graças à intervenção da sociedade civil e setor social.

Em entrevista à agência Lusa, a provedora de Justiça, recentemente reconduzida no cargo para um segundo e último mandato, revelou que em 2021 se mantém a tendência de subida do número de queixas apresentado a este órgão de Estado.

“No ano de 2021 atingiremos um novo recorde histórico, mas ao que tudo indica, embora não tenhamos feito todas as contas, a subida do ano de 2021 não será tão intensa quanto o de 2020, que foi de 19% ou 18%”, adiantou Maria Lúcia Amaral.

A área mais visada nas queixas, “embora já não com uma tão grande diferença em relação às outras áreas”, continua a ser a da segurança social, logo seguida do emprego público e trabalho, fiscalidade e assuntos económicos.

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Por outro lado, realçou a provedora, “há áreas que têm registado nos últimos tempos uma constante subida“, desde queixas de pessoas estrangeiras — tal como já tinha dito em entrevista à Rádio Observador nesta segunda-feira —, queixas relacionadas com habitação social ou queixas relativas ao Instituto de Registos e Notariado (INR), que “subiram muito também e que tiveram a ver com as circunstâncias específicas da pandemia”.

De acordo com a provedora de Justiça, a pandemia da Covid-19 não trouxe propriamente problemas novos, mas antes um acentuar de problemas já existentes, enquanto que no caso das queixas contra o INR se registou uma consequência direta, por causa das dificuldades de acompanhamento e atendimento e porque “estão em causa atos fundamentais para a vida de todos”.

Na avaliação do impacto da pandemia no funcionamento dos serviços públicos, Maria Lúcia Amaral referiu que houve “coisas muito positivas a registar” e que conseguiu ter um intercâmbio “muito intenso” com as várias entidades visadas.

“Fomos servindo quase de caixa de correio sobretudo das medidas de apoio que estavam a ser aperfeiçoadas e pudemos contribuir para o seu aperfeiçoamento”, apontou, destacando que houve, no geral, “um muito bom contacto com a administração pública” e que a prontidão e a disponibilidade superaram as expectativas, tendo em conta as dificuldades pela imposição do teletrabalho.

Admitiu, no entanto, que se foi preciso esse trabalho de mediação foi porque nem tudo funcionou bem no processo de atribuição de apoios.

A sociedade portuguesa é desigual, é uma sociedade com bolsas de carência e de pobreza muito grandes e creio que não foi apenas o estado central, poder político e poder político governamental que acudiu. Em muito domínios, se não fosse o setor social, se não fosse até o poder local, todos em articulação, não teríamos podido acorrer às necessidades que sentíamos e isso para nós é muito visível, sublinhou.

Deu como exemplo o setor da educação e a sua atuação logo após o primeiro confinamento, a forma como o setor social esteve presente ou o trabalho “fundamental” feito pelas autarquias para complementar “o socorro prestado pelas diretrizes do poder político”.

Para Maria Lúcia Amaral, outro exemplo da atuação da sociedade civil esteve visível na proteção das pessoas sem-abrigo que, quando foi obrigatório o confinamento, não tinham onde o fazer.

“Eu suponho que todos sabemos que houve uma resposta conjunta que não foi apenas portuguesa, mas também europeia, para impedir que essa queda se acentuasse a um ponto que gerasse desintegração e numa sociedade desigual como a portuguesa, se não tivéssemos tido essa resposta, teríamos tido consequências tremendas”, defendeu.

Referiu, a propósito, que a provedoria de Justiça tem funcionado muitas vezes como complemento perante outras instituições da sociedade civil, já que se trata de uma instituição do Estado que está “particularmente vocacionada para ser a voz imediata dos cidadãos perante as autoridades públicas”.

Relativamente ao mandato que entretanto iniciou, a provedora de Justiça vincou o que já tinha referido no seu discurso de tomada de posse, de trabalho em prol dos mais prejudicados pelas más práticas da administração pública, explicando que quer deixar bem vincada a diferença entre o trabalho do provedor de Justiça e o poder judicial, nomeadamente os tribunais, que não atuam sob iniciativa própria.

Sublinhou que “fará todo o esforço” no sentido de encontrar um equilíbrio entre a resolução dos problemas de cada pessoa que apresenta queixa e a capacidade de ter uma “visão objetivo do que é que vai mal”.

Maria Lúcia Amaral frisou que os mais prejudicados poderão ser os imigrantes — as únicas pessoas que “cá vêm apresentar presencialmente as suas queixas” — os pensionistas, as pessoas que precisam de habitação social e os jovens que estão à guarda do Estado nos centros educativos, para os quais deveria haver “maior atenção pedopsiquiátrica”.

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Provedora de Justiça quer visitar esquadras e chegar às comunidades mais periféricas

A provedora de Justiça pretende alargar às esquadras de polícia as visitas no âmbito do Mecanismo Nacional de Prevenção e arrancar com a “provedoria itinerante”, indo ao encontro de comunidades mais periféricas, como as ciganas.

“Por exemplo, às esquadras de polícia e [a]os espaços de detenção das forças de segurança, que estão espalhados por todo o território e que nós não tínhamos meios de chegar”, adiantou, sublinhando que com maior capacidade de planeamento e de ação será possível alargar as visitas a estes novos espaços que ainda não tinha sido possível acompanhar.

Além das visitas às esquadras, a provedora de Justiça pretende continuar a privilegiar três “grandes espaços”, entre os estabelecimentos prisionais, os centros educativos para jovens e os espaços de instalação temporária ou espaços equiparados, e que “são espaços de detenção por excelência”.

A minha ideia é que nós continuaremos a privilegiar estes espaços, que são espaços de detenção por excelência; o mecanismo tem a obrigação e o dever de fazer visitas regulares a espaços onde haja pessoas privadas de liberdade à guarda de autoridades estaduais e estes são espaços emblemáticos dentro desta definição, justificou a provedora.

Por outro lado, Maria Lúcia Amaral adiantou que pretende — “Assim que este flagelo pandémico permitir” — arrancar com uma “espécie de provedoria itinerante”, de forma a ir ao encontro de comunidades mais periféricas, onde a instituição não tem muita difusão.

“Sair daqui e ir ao encontro de autarquias, de associações, de comunidades em todo o país para explicar melhor o que é Provedoria, explicar melhor como é que se apresenta uma queixa e procurar, assim, cumprir esse objetivo que eu identifiquei quando tomei posse”, apontou.

Uma dessas comunidades seria a cigana, de cujos membros recebe “pouquíssimas” queixas, mas com quem já se reuniu, através de associações representativas, com a intenção de levar a cabo uma ação para ir ao encontro de comunidades em que os parceiros associativos tenham presença e possam ajudar a compreender melhor o que lá se passa, a estudar melhor essas comunidades.

“E, eventualmente, ter aí sim também uma ação positiva, em vez de estar à espera de queixas, que é natural que não recebemos. A instituição Provedor de Justiça não tem muita difusão em comunidades periféricas, digamos assim, e o que eu gostaria também era que passasse a tê-lo”, sublinhou.

Da reunião com as associações representativas da comunidade cigana, que a provedora disse ter sido “muito longa”, Maria Lúcia Amaral revelou que lhe foi transmitida uma preocupação com a educação e com a integração dos jovens em todos os níveis de escolaridade, tendo as associações pedido ajuda para que “esses jovens fizessem um percurso educativo integral: significa ascender até ao último estágio de formação, que é o estágio universitário”.

“Estas associações pediam sobretudo ajuda para que deixasse de ser um êxito isolado, porque estavam convencidos de que não haveria resolução desse grande problema comunitário que nós temos se o nó educativo que se forma em torno destes jovens não fosse desfeito”, disse ainda.

Violência das forças de segurança são “casos excecionais”

Os recentes episódios de violência cometidos por elementos das forças de segurança portuguesas são “casos excecionais” e não constituem “a regra”, defendeu a provedora de Justiça, recusando a existência de “práticas sistemáticas reiteradas” de violência discriminatória.

“Podemos nós aferir que existem práticas sistemáticas reiteradas nas nossas forças de segurança, culturas disseminadas de violência e de violência discriminatória contra pessoas vindas de fora e, eventualmente, de outras raças? Eu, tanto quanto sei, recusar-me-ei a fazer uma afirmação com essa amplitude”, afirmou Maria Lúcia Amaral, que admitiu não ter recebido muitas queixas nesse âmbito: “Penso que serão casos excecionais e não a regra”.

Em entrevista à Lusa, a provedora de Justiça reconheceu, porém, que episódios de violência — como a que envolveu agentes da PSP, em Alfragide, em 2015, ou, mais recentemente, elementos da GNR, em Odemira —deveriam ter culminado no afastamento desses profissionais das forças de segurança e que, ao nível de queixas, não cheguem à Provedoria “todas as que deveriam chegar”.

“Suponho que deveriam ter sido [afastados]. Para isso é que há procedimentos próprios depois da condenação; há procedimentos disciplinares e há a aplicação de sanções disciplinares. Não há uma explicação [para reincidências], não. Aí estou de acordo. Alguma coisa terá falhado e suponho que, a falhar alguma coisa, ela terá falhado internamente nos procedimentos disciplinares que depois são aplicados”, declarou.

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Para Maria Lúcia Amaral, estes são tempos históricos anormais e “não há polícia nenhuma do mundo que esteja preservada do pior”, situando nesse enquadramento o caso em torno da morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk, em março de 2020, quando estava à guarda do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF).

O caso de Ihor Homeniuk integra-se num problema que ficou detetado: o problema da inadequação de espaços existentes para acolher as pessoas que chegavam a Portugal. A inadequação visível daquele espaço era em si mesmo um fator explosivo. Não há polícia alguma no mundo que esteja protegida do pior. Pode acontecer, agora há condições institucionais e fácticas que podem promover o pior. E, ali, foi o que aconteceu, explicou.

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Relativamente à criação dos botões de pânico no SEF, que ainda não são uma realidade após terem sido anunciados em dezembro de 2020, a provedora de Justiça recusou que tal estivesse associado ao risco iminente de agressões e esclareceu que o objetivo deste instrumento passa por assegurar uma resposta rápida no caso de uma pessoa se sentir mal.

“Por estarem à guarda do Estado português, este tem a especial obrigação de as tratar como elas devem ser tratadas: de acordo com a sua indeclinável dignidade e deve ter cuidado com isso. O Estado português é responsável pela sua integridade física e, portanto, era para o caso apenas de as pessoas se sentirem mal”, destacou.

Confrontada igualmente com o aumento no espaço público de discursos de ódio e com cariz discriminatório, Maria Lúcia Amaral assumiu “grande preocupação” com este fenómeno e saiu em defesa do estado de Direito democrático enquanto garantia da “capacidade de conviver com a diferença”, integrando-a pela força do “discurso, pela ação das instituições, pela assunção de responsabilidades e pela aprendizagem”.

Provedora de Justiça “otimista” sobre uso de bodycams por polícias

A utilização de sistemas de videovigilância pelas forças e serviços de segurança, que vai permitir aos polícias usarem câmaras nos uniformes (bodycams) é vista com tranquilidade e otimismo pela provedora de Justiça.

Em entrevista à agência Lusa, Maria Lúcia Amaral garantiu estar “francamente tranquila”, apesar de reconhecer que é preciso tempo para perceber se este mecanismo irá expor novos episódios de violência por parte de elementos das forças de autoridade ou se vai constituir uma salvaguarda e uma proteção reforçada dos direitos dos cidadãos.

Se, de facto, não conhecemos da realidade a metade, estes instrumentos dar-nos-ão a visão geral da realidade; se, de facto, a realidade não é — como eu creio que não é — atravessada por uma propensão sistemática preocupante para os maus-tratos, então este será um instrumento benigno que ajudará a proteger os direitos das pessoas e a salvaguardar também as próprias forças de segurança, disse.

O diploma sobre a utilização das bodycams e o seu acesso por forças e serviços de segurança e Proteção Civil foi promulgado na segunda-feira pelo Presidente da República, que baseou a .decisão em “pareceres globalmente favoráveis do Conselho Superior da Magistratura, do Conselho Superior do Ministério Público, da Associação Nacional dos Municípios Portugueses, da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC), da GNR e da PSP”.

“Estou otimista em relação a esse meio. Creio que não temos nada a perder com ele, por aquilo que expus. Creio que foi uma boa decisão que foi tomada, veremos como é que é aplicada”, acrescentou a provedora de Justiça.

E é no parâmetro da aplicação do uso das bodycams no terreno pelas forças e serviços de segurança que está a maior preocupação de Maria Lúcia Amaral, ao reportar o “fosso muito grande entre a qualidade da deliberação e dificuldades não imaginadas no cumprimento prático” que, sustentou, por vezes acontece em Portugal.

“Uma coisa são as decisões que são tomadas e que parecem muitas vezes tão equilibradas e sensatas, e depois outra é a dificuldade da sua execução. Quem delibera não tem, possivelmente, a capacidade prospetiva de imaginar as dificuldades de execução”, referiu, resumindo: “Veremos se é o caso”.

De acordo com o texto aprovado, as bodycams devem ser colocadas de “forma visível” no uniforme e a captação e gravação de imagens e som podem apenas “ocorrer em caso de intervenção de elemento das forças de segurança, nomeadamente quando esteja em causa a ocorrência de ilícito criminal, situação de perigo, emergência ou alteração de ordem pública, devendo o início da gravação ser precedido de aviso claramente percetível, sempre que a natureza do serviço e as circunstâncias o permitam”.

A captação e gravação de imagens é obrigatória quando ocorra o uso da força pública sobre qualquer cidadão ou o recurso a quaisquer meios coercivos, especialmente arma de fogo, sendo proibida “a gravação permanente ou indiscriminada de factos que não tenham relevância probatória”, de acordo com a proposta.

Esta lei vai também permitir que as câmaras de videovigilância sejam usadas pelas polícias em operações complexas, como em eventos de grande dimensão ou operações de elevado risco, prevenção de atos terroristas, controlo de tráfego na circulação rodoviária, repressão de infrações de trânsito, ações de busca e salvamento e controlo de pessoas nas fronteiras, bem como na deteção de incêndios florestais e ainda a instalação de sistemas de videovigilância em instalações policiais de atendimento ao público.