“Nenhum de nós o faz porque estamos à procura de algo fácil”. Podia ser uma frase do recém coroado campeão do mundo de Formula 1 Max Verstappen. Podia ter sido por Lewis Hamilton, até, por Kimi Raïkkonen, que se foi embora da modalidade, ou qualquer outro piloto. Podia, porque vem do paddock da F1. Mas vem dos mais esquecidos mas que têm uma importância essencial para os carros e para as corridas. Provavelmente esquecidos por alguns espectadores, mas sobretudo por quem manda na modalidade.

É essa a linha, pelo menos, de uma carta, chamemos-lhe assim, publicada pela Motorsport, escrita por um mecânico que não se identifica mas que enumera de forma clara os problemas que a classe enfrenta, bem como o que poderia ser feito para amenizar o sofrimento que por vezes os mais anónimos membros das garagens sentem. “Todos amamos a Fórmula 1 e sabemos que fazer parte de um Grande Prémio (GP) obriga a um esforço profundo”, refere. No entanto, com os triple-headers (três corridas consecutivas), as coisas pioraram muito, até um “ponto de rotura”, diz. “Da quarta-feira antes da corrida até domingo à noite, depois do GP, é um mínimo de 12 horas de trabalho por dia. Não se percebe sequer o que isso retira de ti até voltares à fábrica e as oito horas normais serem quase cómicas”, admite.

“Depois do final da temporada com México, Brasil e Qatar, em viagens de avião muito duras e mudanças de fuso horário, toda a gente ficou destroçada e acho que foi quando vi todos mais em baixo”, referiu ainda sobre o final do (excitante e polémico) mundial de pilotos de 2021, havendo, claro vários preços a pagar, visto que a profissão afeta o “tempo pessoal e as relações pessoais podem sofrer”.

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E os mecânicos não se queixam de “apenas cansaço mental”. “Fica-se fisicamente esgotado. Durante a época há muitas lesões. Temos muitos médicos, mas a solução mais fácil é darem-nos analgésicos. Não há maneira de um médico normal receitar o que nós tomamos para conseguir continuar”, escreve, acrescentando que “quem não quer analgésicos vira-se para o álcool”.

Sobre a Covid-19, o mecânico em questão queixa-se de como as equipas fazem as testagens “conforme lhes convém e não como é melhor para o indivíduo”, fazendo-o por vezes perder dias de cariz pessoal com testes feitos mais adiante durante a semana. “Uma típica falta de empatia das equipas para com o que fazem as pessoas passar”, garante, falando ainda, sem surpresas, na pressão e nas “expetativas” em torno do trabalho feito, porque “ninguém quer trabalhar num carro no qual um piloto desiste da corrida” e que isso só acrescenta stress: “Os pilotos e as pessoas da equipa confiam em ti a 100% para que não cometas erros, mas todos o podem fazer e somos humanos. Cometi imensos nos meus dias. Quando erras, ficam desapontados silenciosamente e começas a duvidar de ti e a ficar com a cabeça cansada”.

Quem escreveu o texto admite ainda que a “atmosfera nas garagens das equipas pode ser muito tóxica”, por serem um “espaço competitivo, como numa empresa em que todas as pessoas tentam subir mas ninguém consegue, pelo que acabam a ser horríveis umas para as outras”. Isto é em muito causado pelo facto de os ordenados “terem estabilizado nos últimos 20 anos”. Ou seja, “há um cenário estranho em que é quase melhor estar na Formula 2 ou Formula E, porque por pouco menos dinheiro faz-se quase metade das corridas. Não devia ser assim”.  “O caminho para aspirar a subir a mecânico número um já não existe porque os patamares de ordenado não estão lá. Ninguém vê futuro, como é que a F1 pode querer ter mais jovens prometedores de fora?”, questiona a mesma pessoa, que fala ainda em inseguranças sobre “aparência, sexualidade ou estado laboral” que só agravam e têm levado a “depressões, isolamento e estilos de vida não saudáveis”.

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“As equipas têm tentado e algumas coisas estão melhores do que há alguns anos. Nos hotéis as equipas perceberam que não fazia diferença no orçamento existirem quartos individuais e houve um feedback ótimo. No entanto a preocupação sobre a saúde mental mostrada nas redes sociais é sobre os pilotos e não sobre o resto dos trabalhadores. Não há apoio para nós e quebramos mentalmente. Alguns quebraram mesmo. Certos líderes das equipas já disseram que quem não gosta podia sair, mas essa atitude só mostra o quão fora da realidade estão, relativamente ao que é preciso para F1, e a existência da ideia de que se pode substituir alguém como se fosse uma lâmpada”, lê-se ainda no extenso texto.

O mecânico em questão refere ainda que se veem “muitos miúdos a trabalhar, mas não se encontram grandes mecânicos nem técnicos”, pelo que a modalidade “vai falhar”. “Se as equipas pensam que vão promover alguém jovem de categorias juniores sem experiência e que vão ganhar campeonatos no futuro, não estão a perceber a realidade da modalidade. É preciso experiência”, acrescenta, mas explicando que “muitos falaram em sair após este ano e isso não tem acontecido nos outros anos”, em que saem sempre alguns mecânicos e técnicos, mas nunca como no final desta temporada.

E para 2022, em que existirão 23 corridas, um máximo de sempre, o autor no texto garante que “até os fãs acham que não é bom”. “Vamos do Azerbaijão para o Canadá porquê? Não faz sentido. Ninguém considera um calendário que funcione melhor para o staff?”, questiona

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Sobre soluções, apresenta-as até de forma simples. Primeiro, “o melhor seria mesmo alguma empatia do topo”. E depois: “Devem repensar a estrutura de pagamento. O que pode parecer um pequeno aumento para quem manda, faria uma grande diferença para nós. Devia acontecer rotação de staff para estarmos mais motivados e frescos. Uma equipa tentou descansar mecânicos em algumas corridas esta temporada [2021] e fez uma grande diferença”.

“Todos fazemos este trabalho porque adoramos as corridas, mas chega-se a um ponto onde o nosso bem estar mental e físico tem de ser prioridade sobre as necessidades de continuar a aumentar o número de corridas. É preciso mais tempo para exercício e recuperação, melhores avaliações da nossa saúde para que possamos trabalhar no nosso melhor e um entendimento do que a nossa vida realmente é, quando estamos no nosso pior a meio de outro triple header, significaria o mundo para nós”, finaliza.