Morreu aos 94 anos o célebre ator e realizador Sidney Poitier, o primeiro homem negro a vencer o Óscar de Melhor Ator, pela participação no filme “Os Lírios do Campo” (1963). O anúncio foi feito pelo ministro dos Negócios Estrangeiros das Bahamas, Fred Mitchell (Poitier cresceu naquele país). Demoraria 38 anos até outro ator alcançar este feito: Denzel Washington em 2001 com o filme “Dia de Treino”.

“Perdemos um ícone, um herói, um mentor, um combatente e um tesouro nacional”, escreveu o governante na sua página da rede social Facebook, sem mencionar mais detalhes sobre a morte.

Protagonista de filmes como “Adivinha Quem Vem Jantar” ou “No Calor da Noite”, na década de 1960, Sidney Poitier também se tornou o primeiro artista negro a receber um Óscar honorário pelo conjunto da obra, em 2002. Com uma carreira de mais de 70 anos, tornou-se também ativista dos direitos civis (esteve na Marcha sobre Washington onde Martin Luther King Jr. fez o seu discurso mais emblemático) e recebeu a medalha da Liberdade pelas mãos do presidente norte-americano Barack Obama em 2009. Foi ainda embaixador das Bahamas no Japão entre 1997 e 2007. Deixou filmes, livros, diplomacia e marcou uma geração. Transformou-se, assim, no homem que “ajudou a abrir a porta aos atores negros na indústria do cinema”, como o descreveu o jornal americano New York Times.

[quando Sidney Poitier ganhou o Óscar, em 1964:]

Nascido em Miami, nos Estados Unidos, em 1927, cresceu em Cat Island, nas Bahamas, de onde era originária a família. Nasceu prematuro e doente, filho de dois agricultores pobres que foram até aquele Estado americano para vender alguns dos seus produtos. No entanto, a viagem ficou com outro objetivo: a doença era tal, que o pai acabou a comprar um caixão do tamanho de uma caixa de sapatos. Mas Sidney foi à luta. Aos 10 dez anos, o ator mudar-se-ia para Nassau, com os pais e mais seis irmãos, sendo o mais novo. Saiu da escola com apenas 13 anos para ajudar a família. Se a vida tinha sido trágica até então, encontrou nos palcos uma outra alegria. Em 1946, na sua estreia na Broadway com a peça “Lysistrata”, teve apenas nove falas. Mas as críticas foram boas. Estava lançado.

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O ator dos “heróis dignos”, uma autêntica estrela, que chegou a ser dos mais bem pagos da sua geração, chegou com apenas 22 anos a Hollywood. Antes, já tinha sido rejeitado pelo American Negro Theater, grupo de teatro de Harlem, pelo seu sotaque das Bahamas. Agora, ao ler-se alguns dos obituários que lhe foram dedicados, uma das caraterísticas pela qual ficou reconhecido é, precisamente, a sua voz suave mas firme. Mas, novamente, foi à luta. Ficaria a estagiar naquela instituição durante três meses, quando já tinha estado em Nova Iorque com um sonho de adolescente que, por vezes, se fica pela juventude: ser ator.

[o trailer de “Os Lírios do Campo”:]

Quando ganhou o Óscar no filme “Lírios do Campo”, que conta a história de um desempregado que, por acaso, acaba a trabalhar na construção de uma igreja no Arizona, o movimento dos direitos civis estava a começar a fervilhar nos Estados Unidos da América. O seu percurso, quase como se já estivesse escrito, ligou-se, como conta o NYT, “à integração pacífica dos objetivos do movimento”. Mas nem tudo seria pacífico na representação. O perdão, o ódio, a raiva reprimida, estavam todos dentro de Sidney Poitier.

“É uma escolha, é uma escolha clara. Se a sociedade fosse diferente, gritaria para os céus a pedir para representar vilões, para lidar com imagens diferentes da vida de um negro. Mas, raios parta, o que seria de mim se o fizesse nesta altura do campeonato”, referiu noutra entrevista à revista Ebony em 1967. Foi nessa altura que se tornou num dos mais bem pagos atores de Hollywood, com filmes a esgotar bilheteiras e a competir com nomes como John Wayne ou Lee Marvin. É também nessa época dourada, no auge do combate racial, que chegou a temer pela própria vida e da sua família. A cor da pele, contudo, não o deixou interpretar papéis principais em romances.

[o trailer de “Adivinha quem veio para jantar”:]

A sua filmografia também bate certo com a sua personalidade. Tratar a injustiça racial com uma delicadeza superior. Não cabem num simples catálogo. Em 1950, entra logo com toda a força no filme “Falsa Acusação”, que trouxe o seu primeiro grande papel principal, deu o corpo a um médico acusado de homicídio por negligência. Oito anos depois, em “Fugitivos”, que lhe valeu a primeira nomeação para a Academia, fez de condenado em fuga “preso” a um criminoso racista.Em “Adivinha Quem Vem Para Jantar” (1967), a narrativa mantinha o tom: casal interracial, onde o homem, também médico, discute as suas visões liberais com os familiares da mulher. Esse filme estaria nomeado nos Óscares para Melhor Filme, bem como outro: “No Calor da Noite”.

Quem o seguiu, quem o viu, quem o acompanhou, assegura agora que Sydney Poitier era, sobretudo, inteligente, confiante, bonito e nobre. Nesse caldeirão de classe, havia sempre espaço para a explosão comedida, quase disciplinada. Ainda assim, no limbo em que vivia, onde, de um lado, lhe era exigido que representasse os seus ferozmente, como se fosse o seu líder no cinema, do outro, os críticos que, ao contrário do público, não foram tão simpáticos como nos dias de hoje. No seu livro de memórias, O Valor de um Homem, resumiu esta ambiguidade na perfeição, como se estivesse perfeitamente ciente do seu caminho. “Estava a ser levado a desempenhar a tarefa de representar seres humanos exemplares”.

[o trailer de “No calor da noite”:]

Numa altura mais descendente da carreira, virou-se para a realização, não largando, porém, a representação. Destaca-se “Buck e o Pregador” (1972), o primeiro western de um grande estúdio de cinema com personagens negras e um realizador negro. Nos anos 70, voltar-se-ia para a escrita sem recorrer a um “escritor fantasma”. Esta Vida (1980) e Valor de um Homem — que lhe valeu um Grammy por melhor álbum de spoken word — ficam também na sua história. Ainda teve tempo para representar ao lado de nomes como River Phoenix, Robert Redford ou Bruce Willis. E uma curiosidade, segundo as notícias norte-americanas: rejeitou um papel em “Os Condenados de Shawshank” (1994), interpretado com enorme sucesso por Morgan Freeman.

Pai de seis filhos, recebeu praticamente todos os prémios que podia ganhar. Foi-lhe dado o Globo de Ouro Cecil B. DeMille em 1982 e tornou-se no primeiro negro a venceu o prémio carreira do American Film Institute.

Em 1989, durante uma entrevista, resumiria assim a sua carreira, antes de se conhecer na totalidade a marca que deixaria: “Levo comigo as aspirações e esperanças de um povo. Não tinha controlo no conteúdo, nem margem criativa exceto quando recusava um filme, algo que aconteceu muitas vezes”. Antes da sua chegada à ribalta, tal como relembra a revista Variety, os papéis dados a atores negros ficavam-se por pequenas presenças que acabavam, muitas vezes, cortadas. Em 2001, Denzel Washington, num momento repleto de simbolismo, e em jeito de agradecimento involuntário, faria o ponto final. “Estarei sempre a seguir os teus passos, Sidney Poitier”.