O chocolate que se come nos Estados Unidos não é igual ao chocolate que é consumido no Reino Unido ou restante Europa. Mesmo marcas que são globais têm de mudar a quantidade de cacau ou de açúcar presentes em cada exemplar para se adaptar ao palato norte-americano. E, pelos vistos, aquilo que é válido para um Kit Kat também está a valer para produtos culturais. O “The Office” britânico teve de ter a sua versão made in USA (que, sendo justa, se tornou no seu próprio ex-libris com os seus próprios méritos), o universo Harry Potter teve de mudar a sua narrativa para o outro lado do Atlântico na saga “Fantastic Beasts and Where to Find Them”… e agora é o criador de “Downton Abbey” a pegar nos estereótipos da aristocracia, mas desta vez com Nova Iorque como pano de fundo. Como quem diz “isso foi giro, mas agora sem sotaque e com nomes de ruas que eu conheça, por favor”.

O resultado estreia-se agora (esta terça-feira, dia 25 de janeiro) na HBO com “The Gilded Age”, uma série de nove episódios da mesma premiada mente do êxito de 2010. Julian Fellowes ganhou tudo o que havia para ganhar com “Downton Abbey”, passando assim de um representante conservador da Câmara dos Lordes a um guionista cobiçado por Hollywood. O nome do novo projeto — que esteve para ser para a NBC, mas depois de vários atrasos veio parar então à HBO, numa produção que abre bem os cordões à bolsa – é uma menção direta à chamada Era Dourada da História dos Estados Unidos, que chega com o fim da Guerra Civil, a reta final do século XIX e o todo-o-vapor da expansão das linhas ferroviárias. É sensivelmente o mesmo período que Scorsese já nos trouxe em “Gangues de Nova Iorque”, o filme de 2002 com Daniel Day Lewis.

[o trailer de “The Gilded Age”:]

Em “The Guilded Age” começamos em 1882. A jovem debutante Marian Brook (desempenhada por Louisa Jacobson, uma novata apenas na sua segunda experiência profissional na representação) muda-se de uma Pensilvânia rural para uma Nova Iorque efervescente, depois de ter perdido o seu pai, o seu único progenitor, que desbaratou qualquer hipotética herança que a filha tivesse para receber. Sem outra solução à vista, Marian vai então viver com suas tias Agnes van Rhijn (a sublime Christine Baranski, de “The Good Wife” e “The Good Fight”) e Ada Brook (Cynthia Nixon, a eterna Miranda de “Sexo e a Cidade” e de “Just Like That). Sem perceber exatamente o sistema de castas que a sua tia Agnes faz vigorar com uma mão de ferro e uma língua de titânio, a jovem envolve-se numa guerra social entre o chamado “old money” e o “new money”. Sim, aqui são ricos contra novos-ricos. Há o “piso de baixo”, da criadagem, como na série britânica, mas não tem a importância de outrora. Os antagonistas são aqueles que chegaram só agora aos palacetes e aos salões, representados por um magnata ferroviário impiedoso e sua ambiciosa esposa: George (Morgan Spector, de “The Plot Against America”) e Bertha Russell (Carrie Coon, da série “Fargo” e de “The Leftovers”).

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O espectador tem dois desafios no momento de pôr o pezinho nas águas de “The Guilded Age”. O primeiro é, exatamente, o de quase só ter os obscenamente ricos — e os seus problemas de ricos — com quem empatizar. Vamos ter de fazer o acordo tácito que não ser convidado para determinada quermesse de beneficência ou ainda não ter tido oportunidade de estrear o salão de baile lá de casa são questões absolutamente fundamentais. Muitas vezes os intervenientes parecem ainda mais desligados das agruras da vida real que os milionários de “Sucession”.

O segundo problema é a duração, talvez excessiva, do primeiro episódio. É uma hora e vinte (os restantes andam pelos 50 minutos, em média) com muitas personagens e muitos plots a serem apresentados. Mas, felizmente, a ir em crescendo e a desembocar num final de episódio que marca uma cisão que claramente vai dar gás a toda a narrativa. Para isto também conta o ótimo elenco, que ajuda a despertar o interesse pelos personagens. Não há, até ver, um canastrão à vista. Christine Baranski tem tanta graça como dureza e é um prazer ver Cynthia Nixon a fazer algo tão diferente com tanta competência.

Num determinado ponto do primeiro episódio, o arquiteto da mansão exagerada dos Russel explica o desconforto que o seu novo palacete e modo de vida causa nos vizinhos mais antigos: “if you are the future, they must be the past” (“se vocês são o futuro, isso quer dizer que eles são o passado”). “The Gilded Age” é uma série sobre a resistência à mudança, mas também sobre a sua inevitabilidade. Pelo meio, é intriga, figurinos de excelência e one liners esculpidas com detalhe. Parece-me um bom plano para uma terça-feira à noite. Mesmo que não tenham um salão de festas onde ver o episódio.