Morreu Lauro António, realizador das longas metragens “Manhã Submersa” e “O Vestido Cor de Fogo”, aos 79 anos em sua casa, em Lisboa, avançou o jornal Público e confirmou o Observador.
Em declarações à Agência Lusa, o filho Frederico Corado, diz que Lauro António sofreu “um ataque cardíaco fulminante” esta quinta-feira de manhã. Segundo Frederico Corado, o realizador estava a preparar um ciclo de programação na Casa das Imagens, em Setúbal, dedicado ao antigo cinema Apolo 70, em Lisboa, onde o cineasta trabalhou como programador.
Lauro António foi crítico de cinema, ensaísta, dinamizador de cultura e professor. Era casado com Maria Eduarda dos Reis Colares, com quem teve um filho. Frederico Corado seguiu as pisadas do pai e faz parte da lista de realizadores de cinema portugueses.
O cineasta inspirou Herman José a criar a rábula “Lauro Dérmio apresenta”, no programa “Herman Enciclopédia”, no final dos anos 90. O título era uma adaptação do nome do programa televisivo sobre cinema que Lauro António apresentou na TVI. O comediante reagiu à morte do crítico, que descreveu como “um amigo, um homem de bem, um apaixonado pela vida”, numa publicação no Instagram. “‘Let’s look at a treila…’.”
[“Lauro Dérmio apresenta”, no “Herman Enciclopédia”:]
Lauro António “deixa um legado incomensurável” como crítico e cinéfilo, garante jorge Paixão da Costa. “Mudou a nossa forma de ver cinema”
O realizador Jorge Paixão da Costa, que começou como assistente de realização de Lauro António na série televisiva “Histórias de Mulheres”, em 1983, recorda-o como “um mestre e um pai”. “Vivi 12 anos na Suécia e trabalhava em publicidade. Foi muito graças a ele que acabei por regressar a Portugal. O Lauro adotou-me e ajudou-me na decisão de cá ficar. Depois das ‘Histórias de Mulheres’ trabalhei com ele , também como assistente, na longa-metragem ‘Vestido Cor de Fogo'”, filme baseado num romance de José Régio.
A última vez que se encontraram foi na véspera da passagem de ano de 2020 para 2021, já durante a pandemia. “Ele virou-se para mim e sugeriu que seria bom tirarmos uma fotografia juntos. E eu disse: ‘Claro que sim, mas sem as máscaras’. Ele concordou e tirámos a foto, que ainda guardo. No fim eu disse-lhe assim: “Está com sorte, Lauro. Se não houvesse Covid, dava-lhe um abraço que o partia todo’. E ele riu-se comigo.”
Ao Observador, Paixão da Costa sublinhou que Lauro António fica na história mais como crítico e cinéfilo do que como realizador. “Deixa um legado incomensurável. Mudou a nossa forma de ver cinema e fez-nos descobrir outra forma de analisar os grandes filmes. Era muito fácil falar com ele, porque ele falava com o coração. É das poucas pessoas que nunca ouvi dizer mal de ninguém.”
“Teve um papel muito importante na afirmação do Novo Cinema Português”, afirma António Cunha Telles
António da Cunha Telles, realizador de “O Cerco” e nome destacado do movimento Novo Cinema Português, descreve Lauro António como um “grande estudioso do cinema” e uma pessoa “muito afável, que procurava ter sempre uma posição sensata e moderada num meio cheio de conflitos como é o do cinema em Portugal”, razão pela qual “as várias tendências o apreciavam e reconheciam”.
Conheceram-se em 1971 na inauguração do Cinema Apolo 70, em Lisboa. “À época ele já era um nome reconhecido, por isso é que a Lusomundo, responsável pela sala, o foi buscar como programador”, disse Cunha Telles ao Observador. “Era um cinéfilo, um historiador, alguém muito atento e que se debruçava muito seriamente sobre o cinema. Teve aliás, um papel muito importante na afirmação do Novo Cinema Português.”
Para exemplificar a relevância de Lauro António como crítico, Cunha Telles contou que algures na década de 60 “um grupo de cinemas” decidiu deixar de fazer publicidade no Diário de Lisboa, em desgravo perante as críticas de cinema que Lauro António publicava no jornal. “Claro que o Diário de Lisboa o manteve como crítico e a partir daí os textos dele tiveram ainda maior importante na cidade. Toda a gente lia o Lauro António para saber do interesse dos filmes em cartaz.”
Marcelo Rebelo de Sousa destaca contributo de Lauro António para a literacia cinematográfica
O Presidente da República apresentou as condolências à família de Lauro António num comunicado em que destacou o contributo do realizador e crítico para a literacia cinematográfica. “Crítico, programador, divulgador, cineasta, Lauro António conta-se entre os poucos nomes que o grande público identificava com o cinema e a cinefilia”, disse Marcelo Rebelo de Sousa, numa nota publicada no site da Presidência da República.
Marcelo lembrou que, em 2018, condecorou Lauro António com Ordem do Infante D. Henrique, que distingue quem prestou serviços relevantes a Portugal, em reconhecimento do seu o contributo “para a nossa literacia cinematográfica”.
“Já depois disso, pôde ainda deixar à cidade de Setúbal os livros, filmes, fotografias e cartazes de uma vida inteira, numa Casa das Imagens que é o maior acervo português sobre cinema fora da Cinemateca. Também lhe devemos essa última partilha”, apontou o Presidente.
António Costa lembra “o mais incansável dos cinéfilos”
O primeiro-ministro considerou que o realizador de cinema “foi o mais incansável dos cinéfilos”, dedicando a sua vida ao cinema e cuidando de transmitir aos cidadãos o gosto pelos filmes.
“Lauro António foi o mais incansável dos cinéfilos. Dirigente cineclubista, programador, realizador, crítico e professor, dedicou a vida ao cinema sob todas as formas, cuidando de transmitir aos outros o gosto pelos filmes”, escreveu António Costa no Twitter. Na mesma mensagem, endereçou “sentidas condolências” à família e amigos de Lauro António.
Lauro António foi o mais incansável dos cinéfilos. Dirigente cineclubista, programador, realizador, crítico e professor, dedicou a vida ao cinema sob todas as formas, cuidando de transmitir aos outros o gosto pelos filmes. À sua família e amigos, endereço sentidas condolências.
— António Costa (@antoniocostapm) February 3, 2022
Graça Fonseca lamenta morte de “personalidade ímpar da divulgação cinematográfica em Portugal”
A ministra da Cultura lamentou, em comunicado, a morte de Lauro António, “personalidade ímpar da divulgação cinematográfica em Portugal”. Descrevendo o cineasta como “dinâmico e com vontade de dar a conhecer”, Graça Fonseca recordou o percurso do crítico por “inúmeras revistas e jornais” e também pela televisão e a rádio, em programas “que se tornaram icónicos junto do público português”.
“As dezenas de obras que publicou são espelho da sua paixão pelo cinema, mas também de um autor culto e transversal, que também se aventurou no teatro e na poesia”, destacou a ministra. “Através da escrita, do ensino, da programação de salas e da organização de festivais, Lauro António transformou a sua paixão pela arte cinematográfica, num saber que sempre quis partilhar com todos”, afirmou Graça Fonseca, considerando que é este o “grande legado” do realizador, “alguém que, em todas as suas facetas, enriqueceu a cultura portuguesa e deu a conhecer muito cinema aos portugueses”.
“A sua obra é, por isso, não apenas aquilo que escreveu e aquilo que fez, mas também tudo aquilo que cada um de nós aprendeu sobre cinema com o seu trabalho dedicado e infatigável de divulgador.”
Também a Câmara Municipal de Oeiras, onde o realizador deu vários cursos sobre cinema, lamentou a morte de Lauro António, destacando o seu “profissionalismo e competência exemplares” e as colaborações ao longo de décadas com o município, que valorizaram “milhares de oeirenses”.
“É com grande consternação que a Câmara Municipal de Oeiras vem manifestar publicamente pesar pelo falecimento de Lauro António, um dos mais conceituados cineastas portugueses, que deu a honra a este município de colaborar, ao longo de décadas, em várias iniciativas culturais, com um profissionalismo e competência exemplares. O seu trabalho de divulgação da cultura cinematográfica valorizou milhares de oeirenses”, referiu a autarquia, presidida por Isaltino Morais, em comunicado.
Para o município do distrito de Lisboa, Lauro António foi “uma autoridade no que ao cinema diz respeito, tendo contribuído decisivamente para a divulgação pedagógica do cinema”. “Oeiras vai recordar, sempre, Lauro António pela sua mestria, postura e conduta em todos os momentos que colaborou com este município, tendo ao longo dos anos cultivado o respeito e a amizade daqueles com quem se relacionou.”
Lauro António: realizador, crítico, programador e apaixonado por cinema
Lauro António de Carvalho Torres Corado nasceu a 18 de agosto de 1942, em Lisboa. A infância e parte da adolescência foram passadas em Portalegre, cidade que terá sido decisiva na forma como se aproximou da escrita e da cultura, em particular do teatro e do cinema.
De regresso a Lisboa, frequentou a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde se licenciou em História, em 1958. Foi nos tempos de faculdade, na década de 1960, que começou a trabalhar como crítico de cinema, para os jornais República e Diário de Lisboa e a revista Plateia. Colaboraria também com a Opção, Diário de Notícias, A Capital, e o semanário Se7e, entre outras publicações.
Foi membro do Cine-Clube Universitário de Lisboa e dirigente do ABC Cine-Clube.
Depois de ter experimentado a realização durante o serviço militar, Lauro António fez o primeiro filme profissional em 1975, quando rodou a curta documental “Vamos ao Nimas”, sobre os cinemas de Lisboa. Cinco anos depois, adaptou para o cinema o romance Manhã Submersa, de Vergílio Ferreira.
[Trailer do filme “Manhã Submersa” (1980), inspirado no romance homónimo de Vergílio Ferreira:]
O filme, provavelmente o mais conhecido da carreira de Lauro António como realizador, tornou o cineasta “um nome seguro da geração dos anos 70”, considerou Jorge Leitão Ramos no Dicionário de Cinema Português, mas as obras seguintes, como a série “Histórias de mulheres” e “Vestido Cor de Fogo”, não tiveram a mesma visibilidade.
A intensa atividade em torno do cinema fê-lo programar para várias importantes salas, como o Apolo 70, Caleidoscópio e Vox, em Lisboa, colaborar com a RTP e RDP, publicar ensaios, dirigir festivais de cinema em Portalegre, Seia, Viana do Castelo e em Famalicão, e lecionar, consecutivamente, em cursos sobre cinema.
Nos anos 1990, estreou-se como encenador, com a peça Encenação, no Teatro de Animação de Setúbal, mas ficou mais conhecido pelo programa televisivo “Lauro António apresenta”, que apresentou a partir de 1994 TVI, canal onde desempenhou funções de conselheiro para a área do cinema durante seis anos.
O título do programa foi depois recuperado por Lauro António para um blogue, que atualizava com regularidade com crítica sobre cinema. A mais recente entrada data de 14 de janeiro e fala sobre “The Power of the Dog” (2021), filme de Jane Campion baseado no romance homónimo do norte-americano Thomas Savage.
O cineasta escreveu também vários livros sobre cinema, como Cinema e Censura em Portugal e O Cinema entre Nós.
[“Lauro António apresenta”, o programa que o cineasta apresentou na TVI:]
Em 2010, data em que comemorou 50 anos de carreira, foi organizada uma homenagem, exposição e ciclo dedicados à sua obra no Teatro da Trindade, em Lisboa. Em 2018, Lauro António recebeu o Prémio Carreira do Fantasporto, foi distinguido pela Academia Portuguesa de Cinema com um prémio Sophia de carreira e condecorado pelo Presidente da República com o grau de comendador da Ordem do Infante D. Henrique.
O crítico era atualmente responsável pela Casa das Imagens, em Setúbal, um espaço cultural criado a partir de uma doação feita por si à autarquia. Do acervo, fazem parte cerca de 50 mil livros, filmes, fotografias, cartazes e outros documentos, incluindo a placa exterior do Cinema Condes, um anúncio luminoso do Cinema Cascais, e o tripé utilizado durante a rodagem de “Manhã Submersa”.
Durante a inauguração do espaço, a 8 de maio do ano passado, Lauro António explicou ter escolhido o município de Setúbal para doar parte do seu arquivo pessoal, para que não se dispersasse ou caísse no esquecimento, por causa do interesse demonstrado pela então autarca, Maria das Dores Meira, e por causa da “proximidade aos setubalenses” proporcionada pelo projeto Lauro António Masterclass, com sessões comentadas, gratuitas, todas as segundas-feiras no Fórum Municipal Luída Todi,
“O interesse demonstrado pelo público tem sido muito reconfortante. Por isso, esta é uma das principais razões pelas quais escolhi Setúbal”, disse o cineasta durante a inauguração.
O funeral do realizador e crítico de cinema Lauro António realiza-se esta sexta-feira, às 14h15, no cemitério dos Olivais, em Lisboa, disse à Agência Lusa fonte da família.
Artigo atualizado às 9h27 de 4/2/2022 com a nota de pesar do município de Oeiras