Histórias de vigaristas que açambarcam milhares que obviamente não lhes pertencem estão na moda? A resposta é sim e não. Relatos destes existem em todo o lado, a toda a hora, mas a novidade é que parecem estar a aparecer nos streamings como cogumelos. “O Impostor do Tinder” — sobre um homem que se fazia passar por milionário na app de encontros, defraudando várias mulheres — continua no top dos conteúdos mais vistos da Netflix, mas o lugar principal pertence agora a “Inventing Anna”. O primeiro deu origem a um documentário bem estruturado e ritmado. Já a história de Anna Delvey, com mais intervenientes enganados de forma ainda mais inacreditável, revela-se muitas vezes uma farsa desleixada e os vigarizados somos nós, os espectadores.
Quando o projeto avançou estavam reunidos todos os ingredientes para fazer dele um sucesso — e na prática fez, toda a gente anda a ver e a falar da minissérie. É a primeira produção criada e coordenada (como showrunner) por Shonda Rhimes na parceria multimilionária que junta a mãe de “Anatomia de Grey” à Netflix. “Ah, então e Bridgerton?”, podem perguntar vocês. É produzida por ela, verdade, mas saiu da cabecinha de uma das suas pupilas, Chris Van Dusen. Bem, voltemos ao foco — estão a ver como me desvio do que realmente interessa? Sinto que fui contagiada pela falta de rumo de “Inventing Anna” e nunca mais serei a mesma.
Foco: Shonda Rhimes. Toda a gente quer ver o que a mulher faz. Junta-se à equação Julia Garner, a incrível caracolinhos white trash de “Ozark”. Toda a gente quer ver o que ela sabe fazer além de Ruth Langmore. Pega-se na história de uma falsa herdeira alemã que enganou a elite nova-iorquina nos anos 2010, estando muito perto de conseguir um empréstimo de 40 milhões de dólares para abrir um pseudo clube exclusivo dedicado às artes. Toda a gente quer devorar este esquema surreal. Quer dizer, toda a gente q.b.. Nos EUA já se sabia quem era Anna Delvey, o que tinha feito, quem tinha enganado. O projeto podia ter aproveitado para dissecar quem é realmente esta mulher que tem apenas 31 anos atualmente. Nunca chegamos até ela. Talvez os guionistas também não tenham conseguido, mas podiam ter usado a máxima apregoada no início de cada um dos nove episódios: “Esta história é completamente verdadeira, exceto as partes que são completamente inventadas.”
[o trailer de “Inventing Anna”:]
Cada capítulo está focado numa das pessoas enganadas por Anna, do namorado ao advogado para o mega clube que quer criar, passando pela personal trainer. A maioria é real e os nomes usados são verídicos. Rachel DeLoache Williams, por exemplo, era uma amiga que acabou a pagar uma dívida de mais de 60 mil dólares numas férias em Marrocos. Perante a impotência da justiça, contou a história na primeira pessoa na revista Vanity Fair. Entretanto, escreveu um livro e vendeu os direitos à HBO. Não que eu esteja a insinuar que há aqui causa e efeito, mas Williams é na produção da Netflix uma figura interesseira, excitadinha e irritante, pela qual não é suposto sentirmos qualquer tipo de empatia. Em vez disso, parecemos subtilmente direcionados para uma estrada onde é suposto entender e desculpar certas decisões de Anna Delvey. Pausa para factos: esta jovem estoirou milhares que não lhe pertenciam, andou de avião privado sem pagar a conta, dormiu em hotéis de luxo, jantou nos melhores restaurantes, andou de iate, trabalhou zero.
“Inventing Anna” mostra isso tudo, é verdade. Ela é altiva e prepotente. Por outro lado, é inteligente e alguns dos seus atos podiam ser justificados por um bem maior. Quem defende isto é Vivian Kent, não sou eu. Esta é a personagem que me faz mais confusão. Embora brilhantemente interpretada por Anna Chlumsky, há muita coisa aqui a não bater certo, começando logo pelo nome. Vivian Kent inspira-se em Jessica Pressler, uma jornalista que publicou a história da verdadeira Anna Sorokin (Delvey era mais um dos detalhes inventados) em 2018 na New York Magazine. Se os outros, os lesados de Anna, mantêm o nome, qual o motivo para ficcionalizar a responsável por tornar a história global? É que é exatamente ela, a personagem da jornalista, o fio condutor da minissérie. É através da sua investigação obsessiva que vamos descobrindo os detalhes de um esquema que teve como vítimas pessoas supostamente inteligentíssimas e bem formadas que saíram de tudo isto envergonhadas — é a prova de que não é preciso ser um idoso que abre a porta a um estranho e aceita dar-lhe as poupanças que tem escondidas em casa. A manipulação é uma arte e funciona com todos.
Vivian é uma jornalista a tentar recuperar de um erro na carreira. No entanto, o facto de querer agarrar-se a uma história que ela sabe que vai ser bombástica, ultrapassando por vezes a linha do que é ético (quer ajudar a defesa, vai comprar roupas para a acusada usar em tribunal, desenvolve um apego com a protagonista da sua história), não abona muito a favor daquilo que a personagem dela deve representar, a imparcialidade. Se os jornalistas criam afinidade com algumas pessoas que entrevistam? Claro, isso é mais do que natural, não são robots. Mas, neste caso, isso incomoda porque Vivian parece um peão criado para fazer com que o espectador desculpe ou entenda os estragos que esta miúda russa com a mania das grandezas — que teve o mérito de se infiltrar entre os ricalhaços de Nova Iorque, isso ninguém lhe tira — fez sem nunca mostrar remorsos.
Os episódios são longos (todos com mais de uma hora), com uma escrita medíocre e demasiados atores do universo de Shonda Rhimes que estão ali só a fazer um biscate. Querem a lista? Está lá Kate Burton, que interpretou a mãe de Meredith Grey em “Anatomia de Grey”. Está lá Jeff Perry, o pai de Meredith Grey na mesma série. Estão lá Katie Lowes, de “Scandal”; Christopher Lowell, de “Private Practice”; Marika Dominczyk, de “Anatomia de Grey”; e mais umas quantas caras conhecidas.
Quanto a Anna Delvey ou Anna Sorokin, que se fazia passar por alemã mas afinal é russa (o sotaque de Julia Garner nem é carne nem é peixe), tudo fica à superfície. Quem é ela? O que sente, o que pensa? Quais as suas reais motivações? Acreditava nas próprias mentiras? Acreditava mesmo na Anna Delvey Foundation, o tal clube que pretendia criar, ou apenas queria dinheiro rápido para gastar na hora em champanhe e malas Dior? É muito frustrante chegar ao fim dos nove episódios e saber tão pouco sobre esta rapariga que queria ser famosa a todo o custo — foi inclusive consultora na série, embora os mais de 300 mil dólares que alegadamente a Netflix lhe deu tenham servido para pagar dívidas.
“Inventing Anna” teria beneficiado de um tratamento documental, a história é realmente inacreditável devido a todos os contornos surreais que tem. Depois de largarem a ficção e irem investigar os acontecimentos reais, é possível que se sintam tão defraudados quanto eu. Não pela Anna, não conheço a rapariga de lado nenhum, mas por Shonda Rhimes e por esta ficção trapalhona, muitas vezes oca e desmazelada que nos faz perder tempo.