O preconceito
Detesto que a comida seja um statement. Também detesto textos que começam com statements. Mas isso detesto menos. O que não suporto é ver a comida reduzida a um grito da moda ou a uma manifestação ecopolítica. Parece-me má receita e julgo que os resultados estão à vista. O bio não soube lidar com a pressão, separou-se do lógico, e uma dúzia de ovos já custa mais que um pinto; o saudável perdeu o tino e meteu-se com dietas que não dão saúde a ninguém; o glúten ocupou o lugar do mordomo e arcou com as culpas desta história toda.
Penso nisto enquanto espero para me estrear no Honest Greens. E penso por duas razões. Primeiro, porque a fila vai longa e obriga-me a entreter algum tempo. Depois, porque tudo nesta cadeia de restaurantes se anuncia verde, saudável e sustentável, coisa que, admito, me faz sempre torcer a penca. Só o nome já me soa a panfleto e fico enfastiado com a suspeita de taças atulhadas de superalimentos e ração para pássaros. Mas faço um esforço e prometo portar-me bem.
O Honest Greens nasceu em Espanha e o primeiro espaço em Lisboa surgiu no Parque das Nações, em fevereiro de 2020, mesmo a tempo da pandemia. Em outubro seguinte, chegou ao Amoreiras Plaza, onde hoje me encontro. São duas casas amplas que, tanto quanto tenho visto, estão sempre ao barrote. Entretanto tropecei numa tabuleta da marca na Rua Rodrigues Sampaio, mas fiquei sem perceber se vai nascer ali um terceiro espaço. Notícia confirmada é que em breve vai abrir no Porto também.
O conceito
Na parede leio os mandamentos da casa. Tratam-me por tu, o que me faz sentir dentro do prazo, e sublinham os valores da marca: dizem-me para escolher a produção biológica, sazonal e local, respeitar a comunidade e o meio ambiente, valorizar a criatividade de quem cozinha tudo isso. Sinto-me num comício do PAN. Pelo meio, dizem-me também para seguir a dieta dos meus antepassados, mas suponho que não saibam que descendo de uma longa linhagem de gente alarve, criada a linguiça e pão de trigo. Ainda assim, começo a desconfiar que talvez tenha de rever o preconceito.
O regime proposto pelo Honest Greens, explica-me quem sabe, pode resumir-se a uma palavra: flexitarianismo. Não é fácil dizer à primeira, soa a panca desviante com professoras de ioga ou contorcionistas russas, mas assenta em premissas bastante sensatas. A saber: privilegiar as verduras, ir mais à fruta, resistir às tentações da carne vermelha sem abdicar da proteína animal, evitar açúcares e fintar os processados, e pelo meio lá ir abrindo umas exceções, mais ou menos pontuais, para comer o que der na real gana. No fundo, é como ser vegetariano em part-time.
E o Honest Greens é um lugar bonito. Divide-se em vários espaços diferenciados, tem mesas para dois, para quatro, umas redondas para grupos, outras corridas com bancos altos, tudo mobiliário em madeira crua. Tem um teto falso feito de cana verdadeira, enormes vasos de barro, plantas e mais plantas por toda a parte, que me deixam com pena de quem tiver de regar isto todos os dias. É tudo florido, bonito, limpo. Um cenário idílico, não fosse o constante cagaçal. Mas já lá vamos.
A experiência
O protocolo não é evidente para um iniciado. Apanha-se uma folha A2 na entrada, que serve de individual para a mesa e tem inscrito o menu com instruções: escolhe uma proteína, adiciona uma guarnição, escolhe uma salada, adiciona uma proteína. Aborrece-me esta coisa de pensar a comida como um encadeamento de aminoácidos, mas lá entro no esquema. Nas colunas, ouve-se “Let a Man Do What He Wanna Do”, de Lee Fields.
Escolhe-se e paga-se ao balcão, que dá para a imensa cozinha aberta onde uma dúzia de cozinheiros trabalham em alvoroço. No final entregam um zingarelho com um número e eu fico a pensar que é daqueles que tocam quando chegar a minha vez de levantar o pedido. Mas não. Hei-de perceber depois que afinal entregam os pratos à mesa e que a geringonça nem sequer apita, o que quer dizer que, no meio desta sala apinhada, alguém vai ter de adivinhar atrás de que canteiro é que eu me fui plantar.
Mas recuemos até ao fim da fila. Pouco passa da uma e a espera estende-se até à porta, num carreiro de gente gira, urbana, bem vestida, cada um consultando a sua folha grande como um mapa, segurando malas e mochilas, casacos pelo braço. Visto assim, parece o check-in de um voo para Bali. Escuta-se “Open For Service”, dos Crazy P, e tudo avança a bom ritmo.
O problema é que entre o escarcéu da cozinha, o rumor dos comensais, a música em volume de loja pronto-a-vestir, mais as máscaras que nos abafam as ventas, a comunicação com a menina simpática da caixa torna-se penosa e é preciso declamar o pedido em duplicado. A amplificação debita “Can’t Get You Out Of My Head”, versão remix pelos The Third Degree, enquanto ela repete o pedido item por item, e eu indeciso, se hei-de falar mais alto ou saltar para cima de uma coluna e dançar. Avanço para a mesa.
A mesa
Começo por elogiar o grão. O hummus (4,50€) chega com uma textura perfeita, a leguminosa ainda por desfazer, muito azeite e ervas, e uma combinação bem conseguida de romã, tomate, pimento e azeitona. Depois continuo a elogiar o grão, agora na forma de uns ótimos falafel (7,90€), bem fritos, estaladiços mas enxutos, cominhos no ponto, artilhados com um simpático molho de pasta de sésamo (tahini) e acompanhados de uma extraordinária salada, que defende o nome da casa com eloquência e serve de guarnição básica em todos pratos. Chamam-lhe Za’atar, mistura quatro folhas verdes (espinafre, rúcula, chicória e kale), pesto de limão e amêndoas laminadas, e a única falha que lhe aponto é a mesma que denuncio em tudo quando virá para a mesa: um nadinha acima da conta de sal, o que me leva a duvidar da soja.
De resto, o que mais surpreende nem é tanto verde, mas a honestidade: tudo o que chega à mesa é fresco, feito com bom produto, no momento, rápido e à vista, sem pré-fabricados nem truques de plástico, e por um preço justo. A refeição prossegue com o tataki de atum dos Açores e o frango com ervas e mostarda antigua (sic), ambos servidos com a boa salada e uma fatia fina de pão de fermentação lenta fornecido pela Gleba. Ambos saborosos, ambos por 7,9€. Por esta altura ouve-se “So Damn Fresh”, de Nick Fonkynson, e eu pergunto onde estava com a cabeça quando decidi sentar-me junto a um subwoofer.
A minha companhia rega a refeição com uma das águas infusionadas que brotam em torneiras no meio da sala. Custam 2,5€, o que não é barato, mas comparado com a água filtrada, vendida no mesmo preço e modalidade, até que nem é caro. Além disso, são bem refrescantes e ela pode voltar a encher o copo quantas vezes queira. Já eu, decido comprovar a suspeita inicial de que isto não é lugar para beber vinho, ainda que seja uma bebida verde, local, sazonal, sustentável, e até saudável, contando que não abusem como eu. Serviram-me um branco biológico, três dedinhos de altura num copo raso pelo valor de uma garrafa cheia e sem direito a refill (4,5€). Escuta-se “Pudding & Pie”, dos The New Mastersounds, e eu já duvido que aguente até à sobremesa.
A fuga
Os doces e o café servem-se num balcão à parte e são boa razão para passar aqui a qualquer hora do dia, de preferência fugindo ao charivari de almoços e jantares. Por estes dias, doces sem açúcares refinados são tão frequentes quanto desastrosos. Mas isto é outra loiça. Chamo especial atenção para a pumpkin coco spice (3,90€), uma espécie de cheesecake montado com abóbora, spirulina, frutos secos caramelizados, coco e especiarias. Supimpa.
Quanto ao café, diz-se de especialidade e eu acho-o especialmente bom. Só que passaram 45 minutos desde que aqui entrei, a sala sempre a rodar mesas, a raiar da lotação, e a algazarra não amaina. Se comi depressa demais, foi pela mesma razão que me tornei exímio a comprar roupa em menos de cinco minutos: não suporto o chinfrim e só me apetece desamparar a loja. Agora escuta-se James Brown bradar “People Get Up And Drive Your Funky Soul”. E eu não já não sei se fuja, se vá abrir a pista.
Como diria o outro, hei-de voltar. Mas sou capaz de precisar de mais vinho.
Ed. Amoreiras Plaza, Rua Maria Ulrich 1 loja. Tel.:21 048 5239 / Alameda dos Oceanos, 21101 F. Tel.:21 051 4511. Todos os dias das 09h00 às 00h00.
O Experimentador Implacável é uma figura fictícia criada por Arnaldo Valente, que por sua vez é pseudónimo de outro fulano. É homem de palavra e só não dá a cara porque precisa dela para fazer a barba. Tende pouco para as tendências, não é muito sensível às sensibilidades, é fascinado por coisas sem importância e insiste em brincar com coisas sérias. Só fala do que experimenta, embora não possa falar de tudo o que já experimentou.