Pensar e lembrar o Jorge é retribuir o que dele recebi, no princípio da minha vida de escrita, em encontros, livros, viagens, palavras e pastéis. Tive a sorte de ter direito à sua generosidade, à sua biblioteca e às suas memórias e nunca percebi ao certo porquê, mas também sei que não fui só eu.

Deu-me o papel num filme quando eu tinha seis anos e a possibilidade de estar em agosto em Lisboa, com o meu pai, e ainda hoje me lembrar de uma equipa de filmagem. Deu-me os primeiros espetáculos de teatro de que me lembro (“Seis rapazes e três raparigas”, “António, um rapaz de Lisboa”, “Prometeu”) e deu-me uma mão discreta quando foi mais difícil. Deu-me ideias e deu-me emprego, mais do que um, e deu-me tempo quando precisei.

Deu-me muitas leituras e palavras. Gostava de dar conselhos e de dar nomes e títulos para conhecer, tinha sempre muitos nomes e títulos, poemas, ensaios, contos. Deu-me muita literatura e deu-me a traduzir e deu-me dicas para a tradução e empurrou-me para lugares onde nunca pensei estar, e eu deixei-me ir, encontrando muita coisa com a sua energia intensa que não desperdiçava o dia.

Quando visitávamos uma cidade, visitávamos as ruas que eram as suas histórias, que ele queria sempre mostrar, era comer o que ele dizia ser o melhor pastel, aquela tarte, e ver aquele quadro porque era assim que queria dar como me deu livros, mais palavras e filmes.

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Deu-me os meus primeiros textos publicados e deu-me coisas para fazer que eram maiores do que eu e que não consegui fazer. Deu-me a oportunidade de me espalhar, tropeçar, mas não fazia mal porque não tinha de ser tudo bom, era importante fazer. Deu-me a possibilidade de viver em Berlim porque me deu um número de telefone ou de fazer um curso em Londres porque me deu uma carta ou de ir a Barcelona ou Milão porque impingiu uma peça minha.

Deu-me trabalho, porque dava trabalho trabalhar com ele, trabalho de escritor, editor, tradutor, revisor e deu-me gente a conhecer, muita gente e eu entre tudo aquilo a fingir que sabia o que ali estava a fazer e a tentar dar em troca.

E assim foi-me dando confiança até já não dar mais e depois fui à procura dos meus. Recordar o Jorge é por isso para mim recordar o prazer de dar com aquele verso do Pessoa a ecoar por trás, pensando que talvez seja por isto: “Só guardamos o que demos.”

José Maria Vieira Mendes é dramaturgo